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Para refletir - 13/06/2025, 15:22 - Dara Medeiros

Solidão LGBTQIAPN+: comunidade relata os desafios de amar e ser amada

Preconceito e exclusão familiar são alguns dos fatores que afetam relacionamentos amorosos dessas pessoas

Solidão LGBTQIAPN+ é um dos assuntos mais discutidos na nova geração
Solidão LGBTQIAPN+ é um dos assuntos mais discutidos na nova geração |  Foto: Reprodução/Freepik

O Dia dos Namorados passou e, para uma grande parte da comunidade LGBTQIAPN+, o 13 de junho chegou como um alívio. Enquanto casais héteros vivenciavam o amor livremente desde que o mundo é mundo, quem não se enquadra nos padrões sociais ainda se vê silenciado, reprimido, descartado e sozinho em muitas situações.

Um dos assuntos discutidos pela nova geração é a solidão LGBTQIAPN+. Por isso, o MASSA! ouviu especialistas em gênero e pessoas que vivem na pele os desafios que essas pessoas enfrentam para amar e serem amadas.

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Dellamora Luz Kieza se identifica como uma “bixa preta não-binária” e se orgulha muito em ser quem é. Estudante e pesquisadora dos Estudos de Gênero, Diversidade e Ativismos, ela afirmou que as raízes dessa solidão são muito mais profundas do que realmente aparentam, pois são causadas por fatores que surgem muito antes das relações românticas serem construídas.

“Para falar sobre a solidão da pessoa LGBTQIAPN+ é necessário compreender sobre a complexa realidade a qual essas pessoas vivem dentro da sociedade, que comumente está relacionada a discriminação, rejeição pela família e a dificuldade de se compreender e se encaixar na sociedade-norma enquanto pessoa”, explicou.

Dellamora Luz Kieza é estudante e pesquisadora
Dellamora Luz Kieza é estudante e pesquisadora | Foto: Maicon Motta/Divulgação

A pesquisadora apontou que a família é o núcleo mais importante para o desenvolvimento de um indivíduo e, como muitas vezes não há apoio por parte dos parentes no processo de construção de gênero e sexualidade, isso afeta diretamente a maneira com que a pessoa enxerga a si mesma e se relaciona com o próximo.

“Sabemos que a quantidade de pessoas que não possuem apoio emocional, uma boa relação afetiva ou até mesmo são expulsas de casa é bem alta. Toda essa relação, onde muitas vezes é muito abusiva, traz como resultados o sentimento de solidão e a busca pelo isolamento para que possam se proteger, é como uma armadura”, contou ela.

Outro ponto que reforça a solidão LGBTQIAPN+, mesmo entre pessoas do mesmo grupo, é o fato de vários padrões normativos continuarem a serem cobrados. Por exemplo, casais gays e lésbicos costumam ser questionados sobre quem é o homem da relação. Aspectos raciais e de idade também influenciam o processo.

Na prática, quem menos se encaixa nos estereótipos aceitos, mais excluído é: “Analisando dentro da comunidade, vemos que pessoas trans, travestis, não-binárias, negras, indígenas e idosas passam por uma relação totalmente diferente, já que essas possuem uma intersecção de violências e atravessamentos maior, ou diferentes de pessoas cis e brancas, entendendo o racismo, a transfobia e o etarismo como sistemas de opressão”.

As vivências de Cleidson Santana

No caso do influenciador soteropolitano Cleidson Santana Santos, de 33 anos, o processo de descoberta de orientação sexual foi intenso. Mais conhecido como Baby pelos seguidores, ele se identifica como um homem “muito gay”.

Agora que está bem resolvido, o blogueiro abraça o jeito afeminado com muito carinho, mas houve uma época da vida em que teve que lidar com comentários ofensivos e especulações sobre sua sexualidade. Foi na adolescência que ele começou a enfrentar o preconceito.

“Eu sempre falo às pessoas que eu me descobri através de outras pessoas, né? Porque quando nós somos jovens gays, e eu como gay afeminado, as pessoas sempre falam: aí é ‘viado’. E aí a gente passa pelo processo de entender o que é viado e entender o que é gay”, revelou.

Apelidado carinhosamente de Baby, Cleidson Santana é influenciador digital
Apelidado carinhosamente de Baby, Cleidson Santana é influenciador digital | Foto: Divulgação
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Lá no bairro onde eu morava tinha muitos gays e a forma que as pessoas falavam deles não era boa, mas eu sei que desde novo eu me aceitei gay

Depois de entender seus gostos e preferências, Baby tomou a decisão de contar a novidade para a mãe: “Eu já sabia que eu era gay, já me aceitava gay, e eu tinha muita vontade de contar isso à minha mãe”.

O influencer teve a ideia de escrever uma carta e colocar na bancada entre o toca-discos e o rádio da casa, para que ela pudesse achar e ler sozinha. Um dia depois do ato de coragem, ele encontrou o papel no mesmo lugar, amassou e jogou fora para que ninguém pudesse saber. O que Baby não imaginava era que a mãe tinha visto o texto.

“Minha mãe leu essa carta, só que eu descobri depois que ela faleceu, porque meu irmão me contou que achou a carta, deu a ela, ela leu a carta, dobrou e colocou no mesmo lugar”, relembrou ele.

Como uma história de filme, a carta voltou às mãos dele anos depois, a partir de uma prima que havia achado o papel amassado, lido o que ele tinha escrito e guardado. Ela devolveu quando achou que era o momento certo.

Baby é um homem cis e gay
Baby é um homem cis e gay | Foto: Divulgação

Para os outros, a sexualidade de Cleidson Santana acabou se apresentando por conta própria: “Eu nunca tive esse processo de sentar com a minha mãe, conversar e falar que eu era gay, de sentar com o meu pai, de sentar com a minha família. As coisas foram fluindo de uma forma muito natural, sabe? Eu falava que ia sair com os meus amigos e que tinham uns que tinham namorado”.

Baby enfrentou alguns problemas com o pai, que era rodeado por homens machistas que inventavam mentiras para prejudicá-lo. A situação foi tão séria que eles se afastaram.

Aspas

Ele disse que se eu fosse gay, não era mais pra eu considerar ele como um pai

Os anos se passaram e os dois se resolveram. Inclusive, o influenciador já viveu um relacionamento sério e chegou a levar o namorado da época para conhecer a família. Atualmente, todos se dão bem e se respeitam.

A solidão não é mais uma prisão

Cleidson Santana afirmou que a discussão sobre a solidão das pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+ é real e que ele passou por essa questão há alguns anos.

O influenciador mudou a forma de encarar a solidão LGBTQIAPN+
O influenciador mudou a forma de encarar a solidão LGBTQIAPN+ | Foto: Divulgação

“Sobre a solidão da comunidade LGBTQIAPN+, ela existe, ela é real e viva até hoje em dia, porque eu vejo muitas pessoas falando sobre esse sentimento de não pertencer, de não estar, de não ser visto, de não ser desejado, e eu já passei por isso”, contou.

O primeiro impacto aconteceu em eventos voltados para o próprio grupo: “Quando eu comecei a frequentar lugares que chamam de LGBTQIAPN+, eu via a diferença do desejo, do olhar, como olhavam pra mim, como é que olhavam para outras pessoas que estavam mais dentro dos seus padrões, mas eu decidi que esse problema eu não ia carregar mais pra minha vida”.

Para Baby, a virada de chave foi enxergar a situação por outra perspectiva. “Eu consigo ir pra uma festa na intenção de dançar e não de beijar, para eu não ficar frustrado, de ir no barzinho e saber que pode acontecer de eu ficar com alguém, mas eu não tô indo nessa intenção”, detalhou.

O blogueiro de Salvador chamou atenção como esse quadro é ainda é mais delicado para mulheres transexuais. "Muitas mulheres trans que eu conheço, elas se sentem sozinhas. Eu conheço algumas que, pra não se sentir só, contratam garotos de programa que pra elas são confiáveis”, disse ele.

A resistência de Giulia Trindade

Giulia Trindade é influencer digital de Cruz das Almas
Giulia Trindade é influencer digital de Cruz das Almas | Foto: Reprodução/Instagram @giuliaatrindade

Esse abismo solitário também é a realidade de Giulia Cabral Trindade, de 29 anos. No caso da influenciadora baiana, ela nunca se relacionou com garotos de programa, mas sofre assédio quase diariamente em seu perfil no Instagram com mensagens desrespeitosas, porque muitos homens associam mulheres transexuais à prostituição e à figura de um brinquedo sexual.

“São vídeos pornográficos que mandam sem a gente solicitar, sem a gente pedir, muitos homens casados que criam perfis fakes e outros que vêm com o próprio perfil mesmo e falam com a gente! Eles são insistentes, eles ficam ali no pé mesmo da gente”, lamentou.

Como se viver esse desrespeito não fosse o suficiente, Giulia ainda recebe comentários ofensivos de internautas que a chamam pelo nome morto, que é a identificação masculina de quando ela nasceu, e invalidam a escolha dela, ainda que isso não seja da conta de ninguém.

“Os haters e os fakes tentam de certa forma menosprezar a gente, diminuir falando que a gente tem traços masculinos, que a gente nunca vai ser mulher, essas coisas. Só que eu acho que não me afeta não, porque quando a gente sabe quem a gente é, a opinião dos outros é só a opinião mesmo”, contou ela.

Forte e corajosa, a blogueira encara a vida de cabeça erguida e ignora os ataques virtuais. Depois de um longo processo de descoberta de identidade e gênero, essas questões se tornaram pequenas comparadas à felicidade que Giulia sente por finalmente ter se encontrado.

De início, Giulia percebeu que gostava de homens, então pensou que era gay. Depois, ela foi se percebendo feminina e achou que se identificava como uma pessoa não-binária, até que conseguiu se ver como uma mulher trans.

A blogueira se descobriu transexual depois de muitos anos
A blogueira se descobriu transexual depois de muitos anos | Foto: Reprodução/Instagram @giuliaatrindade

“Eu me descobri curtindo mais esse mundo feminino pela questão da vestimenta e acessórios, mas ainda assim não tinha aquela aceitação própria de dizer que eu sou uma mulher trans, que veio com o tempo, tanto que eu me identificava como não-binária antigamente. E aí depois, há pouco tempo, que eu consegui me ver mesmo como uma mulher e assumir essa identidade”, revelou a influencer.

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Pra mim foi libertador, sabe? Eu não tava conseguindo mais me enxergar, me olhava no espelho e não via o meu nome morto

Durante o período de transição, a influencer digital recebeu apoio de amigos e familiares, em especial da mãe dela: “Minha mãe é uma pessoa que me apoia muito, até porque eu fiz algumas cirurgias plásticas e tive todo o cuidado dela”.

Em casa, a mudança de gênero foi tranquila e apenas um primo a reprimiu. Porém, eles aprenderam a lidar com as diferenças. “Mantemos o respeito. Ele me respeita de lá, eu o respeito de cá e está tudo bem”, contou.

Giulia não aceita menos do que merece

Giulia Trindade se tornou uma mulher transexual empoderada e já não quer repetir padrões amorosos. Natural da cidade de Cruz das Almas, no interior da Bahia, ela já passou por muitas situações difíceis envolvendo relações românticas.

Por morar em um lugar onde as pessoas se conhecem e comentam muito sobre a vida alheia, Giulia e o ex-namorado ouviram muitos comentários negativos, mentiras e acusações preconceituosas por causa do gênero dela.

Atualmente solteira, ela confessou que gosta de um outro homem, mas que o relacionamento não vai para frente porque ele cedeu às pressões externas.

“Eu gosto muito de uma pessoa, acredito que essa pessoa também gosta muito de mim, a gente se conhece há mais de 10 anos, mas eu acredito que por conta dos comentários, por conta da sociedade, família, amigos, etc, a gente não fica junto”, lamentou.

Cansada de ser colocada nesse lugar de ‘boa para ficar e ruim para assumir’, a influenciadora tomou a decisão de não aceitar menos do que realmente merece. Ela está solteira e seletiva.

“Eu não quero viver só nesse lugar de prazer, pra essa pessoa me usar uma noite, no outro dia passar, não olhar nem na minha cara, não me cumprimentar… Eu acho bem complicado. Depois que eu aprendi a me valorizar, fiquei com muito menos pessoas, quase zero”, declarou.

Giulia ainda acredita no amor
Giulia ainda acredita no amor | Foto: Reprodução/Instagram @giuliaatrindade

Mesmo com todas as adversidades, Giulia Trindade ainda acredita no amor: “Eu tiro pelo que eu tenho dentro de mim, sabe? Eu sou o amor. Eu sou uma pessoa que ama muito a outra e que faz tudo para ver a outra bem, e eu acredito que em algum lugar vai ter alguém para poder compartilhar do mesmo sentimento”.

Para ela, o dia 12 de junho foi difícil, mas ela tem esperanças de comemorar o Dia dos Namorados acompanhada nos próximos anos. Outro desejo é poder passar os festejos natalinos de casal.

“Eu sinto falta de presentear nessas datas, porque a minha linguagem de amor é presentear. Eu adoro presentear, eu sempre lembro da pessoa nos mínimos detalhes, observo que a pessoa gosta e tal. Eu fico meio mal no dia. Também tenho vontade de passar o Natal na casa da sogra, aquela coisa toda”, explicou ela.

É preciso estancar a ferida que sangra há séculos

Muita gente exala preconceito sem nem perceber. Uns dizem que o crescimento do número de pessoas que se declaram LGBTQIAPN+ é culpa de uma ‘geração perdida’, outros falam que a luta por respeito é ‘mimimi’, mas não refletem em como isso sempre existiu e apenas houve um aumento da liberdade para se identificar e falar sobre o assunto nas últimas décadas.

Especialista em gênero e diversidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), a intelectual e influenciadora Tainara Ferreira fez uma reflexão sobre como a diversidade sexual e de gênero foi apagada à força nos séculos passados.

“Sabemos que historicamente no Brasil, principalmente, o pensamento teológico invalidou esses sujeitos colocando eles como quem transgride as ordens divinas, então essa invisibilidade é parte de um núcleo teológico que tinha muita influência no período de construção da sociedade formal brasileira. Esses indivíduos estiveram à margem, suas identidades nunca foram reveladas publicamente naquele período”, argumentou.

A solidão da galera ‘colorida’ acabou se tornando um problema estrutural. Inclusive, pessoas da própria comunidade costumam buscar parceiros e relacionamentos que possam ser mais aceitos, deixando uma grande parte da sigla LGBTQIAPN+ de escanteio.

Para algumas letrinhas, há aplicativos de encontros, relações assumidas e troca de presentes no dia 12. Para outras, o famoso ‘IFood amarelo’, sexo no sigilo e, no máximo, um convite duvidoso no dia 13. No geral, quanto mais diferente, mais objetificado.

As discussões sobre o tema e a troca de experiências ajudam a mudar esses números e aliviam a dor de quem se sente nesse lugar de vazio e solidão. Porém, ainda há muito a ser feito, começando pelo fortalecimento da saúde mental.

“A gente precisa reconstruir a psique desses sujeitos que mesmo hoje possuem liberdade de expressar a sua identidade sexual. Não digo que homofobia não existe, transfobia não existe, não é isso que eu quero dizer, mas quando eles obtêm essa liberdade, será que eles estão bem por dentro depois de tanta violência que sofreram?”, provocou Tainara.

Mas a inclusão da comunidade LGBTQIAPN+ não pode ficar apenas como um dever interno. O respeito das pessoas que não fazem parte da sigla é essencial para que os ciclos de preconceitos sejam quebrados e as pessoas possam exercer o direito de serem elas mesmas.

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