
Em meio aos corredores e grades de metal, detentos custodiados no Conjunto Penal de Lauro de Freitas se animam ao sentir o cheiro de fermento e massa fresquinha saindo do forno. O aroma agradável traz uma animação e conforto, pois, além de significar a hora do 'rango', faz com que eles saibam que o corre na ‘Padaria Escola’ está no máximo do talento.
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O acontecimento marca a rotina de 430 internos, que se juntam todos os dias para degustar pães, bolos, salgados, sonhos, broas e diversos outros alimentos produzidos pelo projeto de ressocialização realizado na unidade. Supervisionada pelo diretor Ítalo Azevedo, a prática se assemelha à ideia iniciada no Conjunto Penal de Serrinha e tem rendido frutos desde a estreia:
“A padaria produz pães para o consumo interno de detentos e funcionários, com uma produção diária de aproximadamente dois mil pães. Além disso, a padaria escola oferece cursos de capacitação profissional, como confeitaria e pizzaiolo”.

Cerca de três detentos ‘trampam’ diariamente na cozinha e recebem um pé de meia pelo serviço. Eles são supervisionados pelos padeiros experientes Pedro e Adriano, que se responsabilizam por ensinar as técnicas de produção. Além disso, a produção já rendeu doações marcantes.
No ano passado, doamos mais de 1.500 panetones para obras sociais, e aqui nessa unidade a gente produziu 500 panetones, além de alguns para a doação a visitantes
Ítalo Azevedo
Com a produção de cerca de dois mil pães por dia, os alimentos não são comercializados, mas apenas consumidos por cada integrante do presídio: funcionários e custodiados. Segundo o diretor, isso ocorre pois a capacidade laborativa ainda é baixa, em comparação com setores educativos, como escolas e cursos.

Como a unidade é voltada apenas ao regime semiaberto, a rotatividade dos internos que trabalham na Padaria Escola é alta. Diante disso, a cronologia envolve: aprendizado sobre o assunto; mão na massa e produção com direito à remissão de pena; e, por fim, despedida do presídio com a liberdade determinada pelo Poder Judicial.
“A gente solta muito e a gente recebe muito preso. Geralmente, o interno não fica aqui mais de seis a oito meses. Ele fica um tempo. Então, ele primeiro se qualifica para trabalhar na padaria, depois ele inicia o trabalho. Então, a gente já prepara outras pessoas para que, quando houver necessidade de algum interno obter uma progressão de regime, a gente já tenha também uma base para a substituição”, detalha.
Resultado positivo
Meses após a inauguração do projeto, a Padaria Escola tem apresentado retorno positivo dos internos, que abraçaram a esperança de uma nova vida e começaram a ‘fermentar’ a ressocialização por meio dos conhecimentos adquiridos na oficina. Alguns abriram seus próprios estabelecimentos, enquanto outros buscaram outras áreas de atuação.
Eles, de fato, quando fazem essa capacitação, saem prontos para trabalhar em qualquer tipo de padaria
Ítalo Azevedo

Um dos jovens ressocializados, que conseguiu liberdade da Justiça recentemente, abriu o coração, em entrevista exclusiva ao MASSA!, sobre a mudança de patamar após passar pela padaria do presídio e aplicar os ensinamentos mundo afora.
Emocionado em relembrar sua trajetória, Valter dos Santos contou que passou 10 anos custodiado, mas que os últimos dois, já na padaria e no regime semiaberto, foram os mais valiosos. Mesmo sem ‘trampar’ no ramo, ele já organiza os documentos para pôr a mão na massa
“Essa oportunidade eu abracei até hoje. Graças a Deus eu saí, estou em uma empresa que eu já trabalhei aqui também de Estofaria.Deus mudou minha vida e vou abraçar até o fim, erguer a cabeça e seguir em frente”, inicia.
Graças a Deus que eu já saí com uma profissão, com uma mente já boa para sair, produzir, trabalhar
Valter dos Santos

Inspiração para o futuro
A história de Valter não é apenas mais uma entre as inúmeras trajetórias dentro da prisão. É um exemplo de superação e de que, com trabalho duro, é possível recomeçar, com a superação dos erros do passado e o abraço a nova realidade.
Hoje, os três detentos, identificados apenas pelas iniciais D.G.M, E.S.C e O.S.M, trabalhadores da Padaria Escola, enxergam o futuro de maneira diferente e nutrem a expectativa de alçar novos voos ao deixar as celas do sistema prisional.

Em conversa com a reportagem, E.S.C, que tem pouco mais de um mês com o aprendizado de fazer pães, contou que aproveita o curso, mas pretende seguir no ramo em que trabalhava antes de ser preso, com automação industrial.
“Eu sempre fui um garoto de classe baixa, como a maioria de nós e, às vezes, na vida a gente passa por algumas situações que nos levam a cometer alguma infração de frente para a lei. E a gente tem que pagar por nossos atos”, abre o jogo.
Temos o livre-arbítrio de fazer o que quer e ir para onde quiser. Mas eu acho que quando a gente passa a extrapolar da lei em si, a gente acaba tendo que sofrer e pagar pelos nossos erros”
E.S.C
Em um ano e quatro meses atrás dos muros do sistema prisional, o detento descobriu que tem uma vocação para a leitura e por histórias profundas: “Antes de eu ir pro sistema carcerário, eu não gostava de ler. E a falta de coisas pra fazer dentro do sistema me levou a ler livros. Já li quase 15 livros durante o tempo que eu estou preso”.

Amante do livro Comprometida, escrito por Elizabeth Gilbert, E.S.C traçou um objetivo claro para o futuro. “Uma coisa para o futuro, quando eu sair daqui, eu quero escrever um livro sobre a minha história que eu passei no cárcere. Tenho esse sonho de escrever um livro”, garante.
Já o reeducando de iniciais D.G.M, que está há dois anos e oito meses custodiado, deseja trabalhar no ramo da panificação quando conquistar o regime aberto. “Estou gostando de trabalhar aqui e quero levar em diante lá fora, quando eu vencer o regime aberto”, revela.
Professor do projeto
Por trás de toda a produção está o mestre. Seu Pedro assumiu o desafio de ensinar os presidiários e, ao quebrar paradigmas sobre o interior dos presídios, guiá-los em busca da redenção através do forno e da massa. Porém, os ensinamentos vão além dos fermentos e se tornam lições de vida.
“A primeira impressão foi assim: como a gente faz para ajudar, né? Ajudar a ressocializar eles. Aí eu, além de ensinar eles, ainda dou conselho a eles, para sair desse mundo, para eles se ressocializarem. Converso com eles sempre aqui, dou conselhos de família. Já estou aqui há nove anos, já ensinei vários”, explica.

Mesmo com o rápido desenvolvimento dos internos, Pedro afirmou que o seu maior orgulho é ver que um dos ex-alunos mudou de vida ao conseguir a liberdade.
“passei uma coisa boa para eles. Me sinto orgulhoso de ver eles. Às vezes, eu me encontro com eles na rua, aí sinto muito orgulho de ter ensinado, ajudado eles. Que a gente diz que ser humano, a gente tem que ajudar o outro, dar oportunidade”, reflete emocionado.
Assista ao 6° episódio:
Série especial
Histórias como essas mostram como os projetos de ressocialização dentro dos presídios podem ser importantes para reabilitar detentos que cumprem pena e se arrependem dos seus atos. O tempo atrás das grades se transforma em um momento de reflexão, mudança e, acima de tudo, esperança de fazer tudo diferente.
Este é o sexto capítulo da série Ressocialização: a luta contra a invisibilidade. No próximo dia 26 de setembro, o sétimo episódio abordará mais um projeto social que também transforma vidas e oferece novas oportunidades.