
Se em 2 de julho de 1823 o povo baiano lutou pela independência do Brasil, em 2 de julho de 2025 foi a periferia da Fazenda Grande do Retiro que foi às ruas por reconhecimento e valorização. Em um momento histórico, a comunidade celebrou o retorno da Festa do Lixo, manifestação cultural criada em 1975 como forma de protesto contra o abandono do poder público.
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Após 40 anos de ausência, a celebração foi retomada pelo Grupo de Arte Popular A Pombagem, em parceria com a Casa do Museu Popular da Bahia, resgatando o espírito de resistência, arte e identidade periférica que marcaram suas origens.
A programação teve início ao meio-dia com uma feijoada comunitária que reuniu moradores e visitantes, o público se concentrou em frente à Casa do Museu Popular, ponto de partida do cortejo cultural que percorreu ruas do bairro com apresentações de capoeira, música, cordel e performances teatrais.

O espetáculo “O Museu é a Rua” encenou a história viva da festa e da comunidade, reafirmando a rua como espaço legítimo de memória e criação coletiva. A tradicional Coroação da Rainha do Lixo encerrou a celebração com emoção.
O evento marcou os 50 anos da criação da Festa do Lixo, que nasceu quando moradores, liderados por Valdemar Oliveira, se revoltaram contra o acúmulo de lixo nas ruas e decidiram organizar um mutirão para limpar o bairro por conta própria. O lixo recolhido foi despejado em frente à antiga Empresa Gráfica da Bahia como forma de denúncia.
O gesto se transformou em festa, com samba, churrasco e faixas de reivindicação. Durante uma década, a celebração cresceu, mobilizando milhares de pessoas, até ser interrompida em meados dos anos 1980 após um episódio de violência.
Para Valdemar, hoje com 80 anos, participar da retomada foi motivo de orgulho. Ele destacou o valor histórico e simbólico da festa como expressão da autonomia da comunidade.
“Foi uma grande vitória ver as crianças jogando bola onde antes havia uma montanha de lixo. A festa nasceu da indignação, mas floresceu como afirmação da nossa dignidade”.

Fabrício Brito, diretor do Grupo A Pombagem e coordenador da Casa do Museu Popular da Bahia, ressaltou que a retomada da festa foi um ato político e pedagógico.
“A gente está lutando para recuperar a autoestima da juventude preta e periférica. Mostrar que a periferia é lugar de professor, de artista, de vereador. Recontar essa história é também disputar o imaginário social sobre o nosso bairro”, afirmou.
Ao longo do cortejo, moradores que viveram as antigas edições da festa e jovens que a conheceram pela primeira vez se impressionaram ao reencontrar símbolos, músicas e personagens que marcaram a memória coletiva da Fazenda Grande do Retiro.
Edielson Miranda, de 56 anos, descreveu o evento como um reencontro com as origens. “Essa festa resgata a verdadeira história do nosso bairro. Durante muito tempo, fomos vistos só como um lugar de violência. Mas aqui sempre houve cultura, luta, arte”.

Apesar de realizada em proporções menores que no passado, a edição de 2025 apontou para o futuro com otimismo. Coletivos como o Instituto Cultural Bantu e o Instituto Viva Bahia se uniram à organização e anunciaram planos para ampliar o evento nos próximos anos.
“A retomada foi um começo. Ano que vem, a festa será ainda maior, com mais participação da comunidade e mais visibilidade”, projetou Fabrício.
A Festa do Lixo se tornou um momento de independência, ela mostrou que a memória pode ser celebrada como forma de reivindicação e que a arte, quando nasce do povo, é capaz de transformar o abandono em potência.