Josenaldo Bispo, 58 anos, mais conhecido como Peu, nas ruas de Salvador, é de Jequié, cidade do sudoeste baiano, onde trabalhava com a fabricação de calçados. Ao se mudar para a capital baiana, iniciou a vida profissional como camelô, até perceber que a aproximação com os sapatos falava mais alto. O jequieense passou por diversas sapatarias, que foram como escola, quando decidiu, então, inaugurar a Peu Restaura.
Figura famosa na Rua do Taboão, no Centro Histórico, Peu comemora os 20 anos da sapataria em 2024. Desde então, consolida sua referência no ramo, se reinventando e transformando clientes em verdadeiros amigos. O sapateiro firmou raízes no território soteropolitano, sobretudo na Baixa dos Sapateiros.
“Todo mundo aqui fala: 'vá em Peu'. Às vezes, eles vêm aqui perguntar como fazer alguma coisa, e eu estou sempre ajudando. Tem coisas que eu pergunto para eles também, de vez em quando cabeça jovem pensa melhor. Aqui é família”, disse Peu, referindo-se à parceria com profissionais mais jovens.
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Uma das profissões mais antigas da humanidade, o ofício do sapateiro é celebrado nesta sexta-feira (25). Com origem datada no século III, por registros católicos dos santos São Crispim e São Crispiniano, a atividade, que se transformou conforme o passar do tempo, busca alternativas para se manter viva.
Em Salvador, os sapateiros foram peças importantes para a consolidação de um dos mais importantes logradouros da capital baiana: a Baixa dos Sapateiros. Localizado na região que se estende da Barroquinha ao Aquidabã, o local se constituiu como um dos primeiros shoppings a céu aberto da Bahia.
De acordo com o historiador Ricardo Carvalho, 58, o início da Baixa dos Sapateiros está diretamente ligado ao desenvolvimento comercial de Salvador. Para o professor, o bairro é fonte de memórias históricas da cidade.
“A Baixa dos Sapateiros tem uma importância grande para a cidade de Salvador. É uma das primeiras e mais antigas ruas da cidade e um dos primeiros pontos comerciais também. Foi ali que Salvador começou a nascer economicamente. Além disso, a Baixa dos Sapateiros também é um lugar de memória, de preservação, de ancestralidade, onde você encontra uma parte do passado da cidade, a parte mais popular do comércio de rua, com uma característica bem histórica, no sentido de resgate de uma Salvador que não existe mais”, explica.
Com a transformação de Salvador, consequência da mudança dos focos de comércio, muita coisa mudou. No entanto, o ramo da sapataria resiste na Baixa dos Sapateiros, principalmente, na Rua do Taboão. Por lá, o cenário é alavancado por figuras como Peu, apaixonado pela profissão e pela busca de mantê-la na ativa.
Peu conta que, durante toda sua trajetória como sapateiro, já formou, em média, 10 novos profissionais. Porém, apesar de manter o desejo de ensinar ainda mais sobre o ofício, enfrenta dificuldades pela falta de incentivo, espaço e jovens dispostos a aprenderem.
“Eu trabalhava como uma equipe de três pessoas. Agora estou procurando outro jovem para formar, mas já sabendo que ele também vai partir”, diz o sapateiro.
Hoje, Peu cultiva uma grande tristeza: a migração dos profissionais da sapataria para outros estados do Brasil e o esvaziamento do mercado baiano.
“Os profissionais estão acabando. Os jovens não querem trabalhar nessa área, os velhos estão morrendo, e quem se aperfeiçoou está indo para o eixo Rio-São Paulo, porque lá o salário é maior”, afirma.
A história do calçado vai se acabar, principalmente de restauração, por não ter profissionais
Josenaldo Bispo
A clientela
“Aqui, a gente sempre procura dar um jeito. O cliente só não pode sair decepcionado”, destaca Peu. Segundo o sapateiro, não existe tempo ruim para os serviços, que seguem uma média de 400 a 500 pares por mês.
Assim, ainda com o distanciamento dos novos centros comerciais soteropolitanos e com a perda de referência para serviços essenciais da população, o ramo da sapataria resiste na Baixa dos Sapateiros com uma alta demanda.
“O ramo da sapataria ainda funciona. Todo mundo aqui se sustenta bem. Hoje em dia, o nível de salário de um sapateiro aqui é R$ 2.500”, explica.
O jequieense, hoje, declara que encontrou seu lugar na Rua do Taboão, onde se consolidou como referência na sapataria. “A maioria dos meus clientes são clientes de 20 anos, e são todos meus amigos agora. E eu tenho o serviço de forrar sapato, achar quem faça isso é a coisa mais rara do mundo”, conta.
A gente que trabalha aqui tem um ditado: quem trabalha aqui, não sai daqui
Peu, dono da 'Peu Restaura'
Na labuta
“Eu estava na sapataria, quando chegou uma senhora e me perguntou onde achava máscara para vender. Eu falei que era muito difícil achar, então ela disse: 'Você não faz?'. Respondi que nunca tinha feito, não tinha como saber se sabia fazer ou não”, contou Peu, que durante a pandemia, chegou a produzir 250 máscaras por dia.
“Depois, eu não parava de vender, então dei até a ideia para os outros meninos que trabalham aqui, todo mundo começou a fazer”, relatou o sapateiro.
Peu segue com o lema de “se eu tentar e não conseguir, aí eu sei que não sei fazer”. Nesse sentido, atualmente, o sapateiro se inseriu em diferentes ramos na confecção e restauração, não só de calçados, como também de bolsas e peças de vestuário.
“Trabalho com pessoal do teatro, da música, faço cosplay. No carnaval, faço bota para as Muquiranas, sandália para o Gandhi. A mulher que se reta, porque ela sabe que eu nunca digo não para um cliente”, brinca Peu.
Por outro lado, a atividade do sapateiro tem seus pontos negativos. De acordo com Peu, não há instituição de apoio ao ofício, de modo que a categoria se sente desamparada e distante de possíveis melhorias nas condições de trabalho.
Peu lamenta o descaso, principalmente, em relação ao tempo de aposentadoria. Segundo ele, os profissionais da sapataria deveriam se aposentar mais cedo, visto que o trabalho exige um grande desempenho, e o uso de materiais tóxicos desfavorece a qualidade de vida.
“Sapateiro não acha apoio. Era para a gente se aposentar com menos idade, já que a gente trabalha com tinta, cola, muito material que envelhece rápido, que inala poeira. Mas o sapateiro não tem nem sindicato”, lamenta.
Expectativas para o futuro
Segundo o historiador Ricardo Carvalho, após a mudança do foco comercial para outras áreas da cidade de Salvador, a saída para a revalorização do Centro Histórico e da profissão do sapateiro é a reinvenção de novas formas de apresentação e preservação.
A cidade cresceu e a atividade de sapateiros acabou ganhando muita força por conta do aumento da própria população da cidade. Então, a expectativa é que a Baixa dos Sapateiros e os sapateiros possam se reinventar, talvez focando no turismo cultural, da preservação de suas tradições, história ou até, quem sabe, assumindo novas atividades comerciais e de serviços também
Ricardo Carvalho
Ezequiel Almeida, 25 anos, é uma das promessas para o futuro do ramo da sapataria em Salvador. O jovem, que aprendeu aos 18 anos o ofício, com o tio, carrega a vontade de expandir seus negócios na área e, assim, manter a tradição da família.
“Há 5 anos eu comecei a trabalhar por conta própria. Tomei gosto mesmo de ficar nesse ramo e aí estou indo pra frente”, contou.
Com estabelecimento ao lado da Peu Restaura, sua inspiração na área, Ezequiel, dono da Rápido Pelourinho, busca formas de manter a profissão respeitada e relevante no mercado. “Teve uma cliente que veio aqui que ficou meio chateada por causa de profissionais que costumam fazer ‘armengue’, coisa que queima nossa imagem. Ela veio aqui, consertou e acabou gostando, e ela fez até uma publicação nas redes sociais pela qualidade. Então, quem procura os sapateiros é pela qualidade’’, diz.
“E pretendo continuar, porque eu acredito que a profissão de sapateiro não vai acabar”, finalizou o jovem.
Para Peu, a expectativa é de realizar seu grande sonho: abrir um curso e contribuir para a formação de cada vez mais jovens no ramo da sapataria, um modo de manter a profissão viva, sobretudo em Salvador.
“Eu não vou morrer sem abrir um curso, é o meu sonho. Quero ver a profissão crescer. Não existe concorrente, eu não vou aguentar fazer esse tanto de serviço, então, se chega um colega aqui, tá me ajudando”, afirma.
“Portugal tá chamando muito sapateiro, eu já recebi muitas propostas. Mas eu não vou não, amo a minha Bahia, não saio daqui por nada. Aqui é a minha tranquilidade”, completou o sapateiro.
*Sob supervisão do editor Jacson Brasil