Se o vinho que vem para celebrar a missa é fruto de um processo de escravização, a gente já fere não só a dignidade das pessoas, a gente fere o próprio Jesus.
Padre Lázaro Muniz
O resgate de mais de 200 trabalhadores que viviam em condições de trabalho análogo à escravidão na cidade de Bento Gonçalves, na Serra do Rio Grande do Sul, respingou em um assunto criterioso para a Igreja Católica no Brasil: a escolha de vinhos canônicos utilizados nas missas de todo o país.
Isso aconteceu porque a empresa acusada, a Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, fornecia mão de obra para vinícolas da região, entre elas a Salton, produtora da bebida utilizada no que os católicos chamam de transubstanciação, mistério que simboliza a mudança do pão e o do vinho em corpo e sangue de Jesus Cristo, respectivamente.
Na última terça-feira (28), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou uma nota oficial na qual expressou que “qualquer tipo de trabalho em condições que ferem o respeito pela dignidade humana não pode ser aprovado” e que “todas as denúncias devem ser investigadas nos termos da lei”.
Em conversa com o Portal Massa!, o arcebispo de Feira de Santana e referência da Pastoral Afro Brasileira, do ecumenismo e diálogo inter-religioso, Dom Zanoni Demettino, reforçou o conteúdo publicado pela CNBB e condenou situações que estão diretamente relacionadas com posturas racistas e xenofóbicas.
Devemos enfrentar com seriedade toda a forma de racismo estrutural.
Dom Zanoni Demettino
"Todas essas ditas experiências, trabalhos análogos de escravidão que devem ser rejeitados e que devemos ter presente essa realidade. Então é essa a nossa posição, posição da igreja, a posição da nossa sociedade, que não há espaço pra preconceito, para xenofobia, para racismo em nosso país", iniciou Dom Zanoni.
Depois do ocorrido na Serra Gaúcha, o arcebispo pontua a necessidade de uma escolha criteriosa do vinho canônico.
"Diante desta situação, dessa grande denúncia, desse grave acontecimento, eu acho que deve ser investigado, deve ser trabalhado com zelo, para que a escolha não seja de forma aleatória. Nós esperamos que seja tratados com a devida responsabilidade e critério", pontuou o sacerdote.
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O padre Lázaro Muniz, capelão da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada no Largo do Pelourinho, condenou o crime e ressaltou a importância da punição aos envolvidos.
Temos que lutar contra todo tipo de escravização.
Padre Lázaro Muniz
"É importante que a empresa seja de fato punida, que pague por esses por essa modo, seja a empresa Salton, seja a vinícola, seja quem esteja envolvido nesse processo de tratar pessoas como escravos, fazer escravizados e maltratar a dignidade", disse padre Lázaro.
Posicionamento nas redes
Nas redes sociais, outros religiosos destacaram um posicionamento contra o consumo dos produtos oriundos de processos análogos à escravidão. Um deles foi o frei Lorrane, da Ordem dos Frades Menores.
"A Igreja não pode cometer o mesmo erro do passado, colaborando com o trabalho escravo. A Vinícola Salton produz o vinho canônico, usado nas missas, e foi uma das que mantinha trabalhadores em situação análoga à escravidão. As igrejas deveriam valorizar a Agricultura Familiar", escreveu em seu perfil oficial do Twitter.
O frei, que já foi atacado inúmeras vezes nas redes sociais por fazer oposição ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ainda sugeriu o consumo do vinho canônico produzido por freis capuchinhos do Rio Grande do Sul.
"Os frei capuchinhos do Rio Grande do Sul produzem vinho para missas. A Igreja no Brasil precisa dar um basta na aquisição de vinho canônico de vinícolas escravocratas. É um boicote? Sim, pode ser. Só não podemos dar lucro à quem não respeita a vida. Busquem: 1Cave dos Frades'", sugeriu.
Vale lembrar que a aquisição do vinho canônico acontece livremente. O próprio sacerdote ou secretários das paróquias e dioceses escolhem a bebida que atenda os critérios estabelecidos pelo Código de Direito Canônico, como a quantidade de álcool e procedência do produto.
Procurada, a Pastoral de Comunicação da Arquidiocese de São Salvador apenas reforçou a nota da CNBB.