
Na madrugada do último domingo (20), um ato de vandalismo apagou parte da história visual do bairro de Castelo Branco, em Salvador. Mais de 10 murais grafitados ao longo da Avenida Genaro de Carvalho foram cobertos com tinta cinza por um homem ainda não identificado.
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As obras foram criadas por diversos artistas da capital, entre eles Éder Muniz, conhecido como Calangoss, que atua no grafite há 25 anos, e é o responsável pela denúncia pública.
As câmeras de segurança da região flagraram a ação. Por volta de 1h30, o homem, vestindo roupas de obra, boné e empurrando um carrinho de mão, usou rolo e balde para cobrir as figuras com tinta. Para Éder, o ataque não foi aleatório. “O que ficou bem pontuado nesse ataque é que ele recortou exatamente só os personagens, ou seja, atacando só as figuras dos painéis. Ele vê alguma questão religiosa nos personagens e ele ataca esses símbolos”, afirmou.
Apesar de os grafites não possuírem ligação direta com religiões de matriz africana, o artista acredita que os símbolos e elementos representados tenham sido interpretados dessa forma pelo autor do crime. Ele relata que não é a primeira vez que isso acontece na região. “Há dois anos, ele atacou uma sereia, que remete a Iemanjá, e outra personagem que tinha um terceiro olho. Atacou exatamente o olho”, relembra.
Entre os artistas que participaram do mural coletivo estão Medusa, Quel, Fozi, Dimak, Zoi, Nikol, Scank, Blok, Questao, Seik, Furo, Been, o próprio Calangoss, Lee27, Theyp, Baga, Marcelo Verme, Dose, Soon, Fumax, Zureta, Seed, Sagaz, Sank25, Poms e Suelen Andrade.

Investigação e denúncia
Após o ocorrido, Éder denunciou o caso nas redes sociais. O vídeo, com as imagens do suspeito e um desabafo emocionado do artista, repercutiu e já passou de 60 mil visualizações. “A gente ainda sente que quem vai colaborar muito mesmo é a comunidade, um vizinho, alguém que conhece o jeito dele, a estatura dele, aquele perfil que ele mostrou ali, pelo menos nas câmeras”, disse.

Ele registrou boletim de ocorrência e levou o caso à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), além de ter procurado a 10ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM), responsável pelo policiamento na região. Agora, aguarda o avanço das investigações.
Um ataque à identidade e à liberdade artística
A destruição dos painéis não representa apenas um dano estético, mas um ataque simbólico à liberdade de expressão e à identidade cultural de Salvador. “O grafite vem dos Estados Unidos, mas a gente começa a ganhar identidade quando começa a falar da gente, da nossa história, da cultura indígena, dos nossos mitos. Salvador é muito rico nisso também”, destaca Calangoss.
Segundo ele, o respeito às diversas expressões de fé deve ser mútuo. “Você passa em Salvador, vê: ‘Jesus Cristo é a salvação’. O grafiteiro não vai lá e depreda isso. A gente respeita aquilo que você se manifesta, a sua espiritualidade. Então isso chega à sociedade como um alerta, de tolerância, de respeito”.

O receio agora é que casos semelhantes se espalhem por outros bairros da capital. “Cada grafiteiro cuida do seu bairro. Já pensou se isso vira moda? Agora um ataque religioso em cada bairro, por intolerância religiosa ou qualquer outra coisa? Você vai atacar o trabalho da pessoa?”, disse.
Arte como instrumento de transformação
Para Calangoss, a presença de murais nas ruas tem uma função muito além da estética. “Esse lugar eu passo aqui de noite, esse lugar aqui é sombrio. Agora não é mais sombrio, porque agora tem cor. E quando tem cor, é dar uma ideia de que está sendo cuidado, que tem uma certa segurança, as pessoas sentem um conforto naquele lugar”.
Ele atualmente trabalha em um mural na Rua Thomas Gonzaga, em Pernambués, e vê o grafite como um espaço de escuta e troca. “Era um lugar que só tinha cartaz, você parava ali, aquela sujeira. Agora está se transformando. Estou misturando os temas, os mitos, e eu nunca deixo assim explícito, sempre deixo aberto ao diálogo. Gosto muito de ouvir as pessoas: ‘o que você sente quando você vê isso?’”
A intenção do artista não é impor um significado, mas propor um desafio sensorial e poético. “Tem trabalhos que são mais complexos, você tem uma leitura da imagem que leva a pessoa. Não é um personagem que tem um corpo de árvore, mas tem ali em cima, sai uma flor. A pessoa tem que se desafiar, é esse desafio também da poética que cada um carrega em si”.
E completa: “Não é nada de atacar a religião do outro, atacar a ideia do outro, mas sim criar um diálogo e a gente conversar”.