
Uma tarde de memórias, troca de experiências e valorização da oralidade marcou o Dia do Contador de Histórias, celebrado nesta quinta-feira (20), no Centro Comunitário de Castelo Branco (CSU). O evento reuniu idosos do projeto Alegria de Viver para um encontro de contação de histórias, sob a mediação da contadora e idealizadora do projeto "Navegando nas Histórias", Lívia Góis.
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Com o objetivo de dar voz àqueles que acumularam uma vida inteira de experiências, a ação trouxe dois contos africanos que serviram de inspiração para os participantes. O primeiro, "A Semente do Baobá", fala sobre reconhecer a própria importância e valor, enquanto o segundo, "A História dos Sapatos", mostra como a narrativa pode ser um instrumento de conexão e aprendizado. "Eu vim para ouvir histórias, aprender, beber da fonte, porque com os idosos está a sabedoria, e a gente precisa respeitar os cabelos brancos", afirmou Lívia Góis.
Para a coordenadora do CSU, Rose Rian, o evento fortalece laços comunitários e valoriza a identidade dos idosos. "Contar histórias é uma forma de resgatar o pertencimento e fortalecer vínculos. Quando os idosos compartilham suas memórias, sentem-se reconhecidos e acolhidos", explicou.
Para Fátima Bastos, analista técnica do grupo de idosos, a contação de histórias não apenas resgata memórias, mas também representa um estímulo intelectual e emocional para os participantes. Segundo ela, cada trajetória de vida pode ser comparada a uma caminhada, onde cada passo representa desafios e conquistas. "A caminhada não é só de pés, é um processo inteligente. Você vai ali, aqui e acolá, resolve problemas, encontra coisas boas. Essa atividade proporciona uma reflexão sobre tudo que já vivemos", destacou. Além disso, a presença de crianças e jovens no evento fortalece a troca intergeracional.
Lívia Góis, que conduz o projeto itinerante "Navegando nas Histórias", ressaltou que seu trabalho é focado em narrativas da cultura afro-afetiva e dos povos originários, valorizando a ancestralidade e a tradição oral. Quem quiser conhecer mais sobre o projeto ou solicitar uma sessão de contação de histórias pode entrar em contato pelo Instagram @liviagoiis.
A trajetória de Dona Maria Júlia
E como estamos falando de contar história o Massa separou a história da Maria Júlia Santos, de 73 anos. Ela nunca havia participado de um evento de contação de histórias, mas se sentiu profundamente tocada pela experiência. Durante o encontro, compartilhou um pouco de sua trajetória de vida, marcada por desafios e conquistas.
Órfã de mãe desde os seis anos, Dona Maria Júlia enfrentou uma infância difícil. Sua mãe faleceu precocemente, aos 31 anos, vítima de meningite. Com a perda, Maria Júlia passou a viver sob os cuidados de parentes até que seu pai, um policial civil, conheceu uma mulher que assumiu a criação dela e dos irmãos. No entanto, o destino lhe reservava mais um golpe: sua madrasta faleceu anos depois, vítima da mesma doença que levou sua mãe.
Apesar das dificuldades, seu pai sempre prezou pela educação dos filhos. Rigoroso, ele exigia que Maria Júlia estudasse intensamente. Ela relembra que passava noites acordada fazendo deveres escolares e estudando contas matemáticas em folhas de pão, pois o material escolar era escasso na época. "Eu dormia às 23h, morrendo de sono, enquanto minha irmã já estava deitada. Se eu dormisse, meu pai me mandava ficar em pé para continuar estudando", contou. A rotina puxada fez com que ela precisasse tomar remédios para melhorar a memória e, assim, conseguir acompanhar os estudos.
Determinada a construir um futuro melhor, Dona Maria Júlia se formou no ensino médio e cursou Secretariado Executivo e Contábil. A fase universitária foi um grande desafio: morando no bairro do IAPI, precisava se deslocar diariamente para diferentes pontos da cidade, como Vale do Canela, Praça da Sé e Federação, onde assistia às aulas. A correria era tanta que, muitas vezes, se alimentava apenas de lanches e acabou desenvolvendo uma gastrite.
Ainda durante a faculdade, começou a estagiar na Secretaria da Agricultura, onde permaneceu por um ano. No entanto, quando estava prestes a ser efetivada, foi surpreendida pelo "Decreto Vassourada", medida governamental que resultou na demissão em massa de servidores públicos. "Eu chorei tanto que o diretor me abraçou e disse que eu era uma pessoa inteligente e que conseguiria outra oportunidade", lembrou emocionada.
Pouco tempo depois, foi chamada para prestar serviços novamente e construiu sua carreira na área de Recursos Humanos, passando por empresas privadas e, finalmente, sendo contratada pelo Estado. Trabalhou por 31 anos no serviço público, onde se aposentou.
"Hoje sou muito feliz"
Ao relembrar sua trajetória durante a contação de histórias, Maria Júlia reforçou o quanto eventos como esse são importantes para os idosos. "A gente revive nossas histórias, reflete sobre tudo que passou e percebe como cada detalhe contribuiu para nos tornar quem somos hoje", disse.