
Milhões de brasileiros vivem como se fossem estrangeiros dentro do próprio país. A comunidade surda, que tem como idioma oficial a Língua Brasileira de Sinais (Libras), enfrenta diariamente várias dificuldades de comunicação com a população ouvinte, ou seja, a população que ouve normalmente.As barreiras, apesar de invisíveis, são angustiantes e estão por toda a parte: nas escolas e universidades, no trabalho e até em supermercados e hospitais.
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Neste 23 de setembro, o mundo celebra o Dia Internacional das Línguas de Sinais, uma data criada para reforçar a importância desses idiomas e enfatizar a urgência da inclusão e acolhimento dos surdos e pessoas com deficiência auditiva na sociedade. No Brasil, a luta é para que a Libras seja aprendida e valorizada pela população com o mesmo destaque que outras línguas ao redor do planeta, como o inglês e o espanhol, recebem.
De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 2,5 milhões de surdos no país, sendo que 178.211 estão na Bahia e 28.131 especificamente em Salvador. Esses números são mais que dados de pesquisa, eles representam cada uma das pessoas que sonham, amam, fazem parte de uma família, possuem amigos, pagam seus impostos e desejam se comunicar livremente.
Surdos merecem respeito e inclusão
A baiana Jamile Siméia, de 37 anos, vive essa realidade na pele. Ela nasceu ouvinte, mas perdeu a audição quando era criança após um problema de saúde chamado Persistência do Canal Arterial (PCA). O processo de alfabetização dela não foi tão simples, mas o suporte familiar fez toda a diferença.

"Quem mais me apoiou foi minha mãe, que também sabe Libras. No começo foi um pouco difícil, porque eu sempre perguntava para ela o significado das coisas e ela explicava para mim. Esse apoio foi muito importante para meus estudos”, disse ela em entrevista ao MASSA!.
Com muito esforço e dedicação, ela também conseguiu se familiarizar com o português. “Aprendi português pouco a pouco, sempre relacionando uma palavra escrita com o sinal em Libras. Foi um pouco difícil, porque a estrutura é diferente, mas continuo aprendendo sempre”, contou.
Para Jamile, o Brasil seria diferente se Libras fosse uma matéria do currículo escolar.
“Eu gostaria muito que Libras fosse obrigatória desde cedo, porque assim as crianças ouvintes aprenderiam a se comunicar com colegas surdos. Isso traria inclusão, respeito e igualdade.
Jamile Siméia
Mesmo longe do cenário ideal, ela rompeu estatísticas e se lançou no mundo acadêmico. Atualmente, Jamile Siméia é formada em Letras Libras e em Design de Interiores pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Ao falar sobre a experiência na faculdade, a professora revelou os desafios da falta de acessibilidade. "Algumas vezes eu conseguia acompanhar, mas em outras não. Alguns professores eram pacientes e buscavam me incluir, mas senti falta de mais acessibilidade, principalmente da presença de intérpretes de Libras, que é difícil", pontuou ela.
Apesar da ausência de tradutores nas aulas, a designer de interiores comentou que os colegas foram respeitosos e não agiram com preconceito, mas era preciso paciência para trocar informações em duas línguas diferentes. O que a manteve firme nos estudos foi a vontade de “aprender mais, crescer como pessoa e como profissional”.
Surdez não é um limite para estudar e conquistar espaço

A professora deixou um conselho para outros surdos que almejam fazer faculdade. "Eu diria para não ter medo. A faculdade é um desafio, mas também uma conquista. Buscar apoio, lutar pelos direitos de acessibilidade e acreditar em si mesmo é muito importante", declarou.
Não é preciso ser surdo para aprender Libras
A dificuldade de comunicação com a comunidade surda não é um problema a ser ignorado por quem não faz parte desse grupo. A psicóloga Leide Batista, de 38 anos, não conhecia nenhum surdo quando decidiu que queria aprender Libras. Não havia necessidade direta na época, apenas o sentimento puro de empatia.

O primeiro contato com essa língua foi em uma palestra que acompanhou. Pouco tempo depois, o interesse se aprofundou ao presenciar um episódio complexo em seu ambiente de trabalho.
"Eu trabalhava paralelamente em uma clínica do SUS e chegou uma menina surda. Ela estava procurando um médico e ninguém conseguia se comunicar com ela. Eu fiquei assim: 'nossa, e agora? Imagina se ela procurasse a psicóloga'”, relembrou.
O desespero de não ter ninguém para atender a jovem na unidade médica se juntou à dura realidade de não estar pronta para falar com um paciente surdo se fosse preciso. A partir desse dia, Leide montou um curso de Libras para ouvintes no próprio escritório, convidando professores para ministrar as aulas e alcançar mais pessoas.
Embora não use Libras com tanta frequência, Leide vivenciou um momento marcante em sua rotina quando um de seus pacientes, que era coda (filho ouvinte de pais surdos), precisou de ajuda para se comunicar com a mãe.
A mulher se emocionou ao ser compreendida pela psicóloga do garoto: “Ela me trouxe uma informação que foi demais. Ela disse assim: 'nossa, eu nunca consegui conversar com um médico que conseguisse falar diretamente comigo sem o intérprete'".

Leide Batista pediu que a população ouvinte se permitisse ter interesse na língua e cultura dos surdos. “A importância das pessoas terem interesse é fundamental para que as pessoas se sintam acolhidas, né? Emocionalmente falando, então, é fundamental", reforçou.
Como aprender a Língua Brasileira de Sinais?
A professora baiana Alessandra Costa encara na sala de aula duas realidades extremas: ensinar Libras para ouvintes e português para surdos. Ela está na área da acessibilidade há cerca de 15 anos e fundou o curso ‘Libras Tudo’ para atender a demanda das pessoas que querem conhecer a Língua Brasileira de Sinais e não sabem como fazer isso.

A educadora explicou que a Libras é uma língua com estrutura definida e vai muito além de gestos soltos ou mímica. Para aprender é preciso se esforçar e estudar bastante, mas ainda assim é um processo mais simples do que aprender um idioma oral.
Aprender qualquer língua exige dedicação, esforço, comprometimento e prática! A gente vê uma busca muito grande por cursos de inglês, de espanhol, né? E a gente não está pensando no nosso conterrâneo surdo

A maioria dos alunos do curso de Alessandra são outros professores, profissionais da saúde e pessoas que trabalham com atendimento ao público em geral, que acabam tendo mais contato com a população surda, mas qualquer pessoa pode estudar Libras.
“A pessoa surda é um estrangeiro no próprio país. Então é preciso pensar que na minha área de atuação eu posso fazer a diferença. Eu, enquanto professor, posso ter um aluno surdo. Se eu trabalho num hospital, eu posso ter um paciente surdo. Ou, simplesmente, eu posso estar passando na rua e ter um surdo passando mal. É pensar na inclusão, na acessibilidade real”, refletiu ela.
Outro ponto importante é exercitar o que aprendeu: “A gente ainda não tem tantos ambientes onde possa praticar a Libras fora da sala de aula, então uma dica que eu sempre dou para os alunos é de assistir vídeos em Libras, sigam surdos no Instagram, no Youtube, para que a pessoa possa assistir e se familiarizar”.

A cidade de Salvador tem opções para aprender Libras e ter contato com pessoas da comunidade surda, para além das instituições e cursos privados.
“Tem escolas de surdos. Tem uma que funciona no Imbuí, que é uma escola específica para estudantes surdos e outros com deficiência. Tem o IFBA, a gente tem uma comunidade de surdos também, estudantes, que estudam desde o nível médio até o superior, e a gente tem, principalmente, o Centro de Surdos da Bahia, o CESBA, que fica logo aqui na Praça da Soledade. Eles sempre promovem alguns eventos, palestras, e é só você chegar que vai ser bem acolhido”, detalhou.
Fique de olho na programação:
- Centro de Surdos da Bahia (CESBA) - telefone (71) 3243-0828 e Instagram @cesba.oficial
- Associação Educacional Sons do Silêncio (AESOS) - telefone (71) 3022-3669 e Instagram @aesosbahiaoficial
Para Alessandra Costa, o primeiro passo para aprender Libras é estar disposto a estudar. “Acho que o mais importante de tudo é o desejo de aprender, de fazer a diferença”, concluiu.