
Em meio à urbanização acelerada e aos índices de desigualdade, o bairro de Pernambués emerge como um símbolo de resistência cultural, inclusão social e potência coletiva. Localizado na zona central da capital baiana, esse território — que integra o histórico Antigo Quilombo do Cabula — pulsa por meio da arte, do esporte, da religiosidade de matriz africana, da educação popular e de iniciativas comunitárias que transformam a realidade de quem ali vive. E se há algo que todos os líderes comunitários da região afirmam em uníssono é que: “falta apoio do poder público e mais investimentos em espaços culturais que possam ampliar e fortalecer as ações que já existem”.
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Neste cenário, cada ação conta. Cada mutirão, cada aula voluntária, cada roda de conversa, cada prato de sopa servido com dignidade. Porque, para os moradores de Pernambués, cultura e cidadania são práticas cotidianas de sobrevivência e afeto. Apoiar essas iniciativas é não só uma questão de política pública, mas um imperativo ético para o desenvolvimento justo das cidades.
O mestre da sopa, da capoeira e da transformação
Mestre Roque Topázio é, há quatro décadas, um dos pilares dessa construção comunitária. “Comecei dando aula de capoeira, mas foi crescendo e acrescentamos aulas de boxe e informática até que criamos a associação”, lembra com orgulho. Ele fundou há oito anos a Associação Educação, Arte e Cultura (EAC), mas já atua no bairro há mais de 30. A entidade oferece hoje aulas gratuitas de capoeira para 50 alunos, boxe para 40 e informática para outros 30.

Mas o impacto da EAC vai além da formação esportiva ou técnica. Às terças-feiras, o final de linha de Pernambués se transforma em um lugar de acolhimento. “Distribuímos de 250 a 300 copos de sopa com pão, toda semana, às 19h. Pode até faltar pão, mas a sopa, não”, conta Mestre Roque. Os ingredientes são frutos da solidariedade: “Muitas vezes, os comerciantes locais doam. Quando a venda está baixa, deixam de doar e temos que nos virar”. A resistência segue, mesmo sem apoio institucional. “Fazemos um trabalho muito importante aqui. Não conseguimos fazer mais porque não temos apoio de ninguém. Somos nós da comunidade mesmo que vamos nos juntando e providenciando tudo”, lamenta.
O grito LGBTQIAPN+ que ecoa há 13 anos

Outra liderança que transforma Pernambués por meio da militância é Tuka Perez, que preside o Grupo Linha de Frente, que realiza ações voltadas para a população LGBTQIAPN+ do bairro, como a Parada LGBT, realizada há 13 anos, e o Miss Gay Pernambués. “Buscamos garantir direitos, acolhimento e apoio psicológico para nossa comunidade”, afirma.
Além disso, Tuka também participa ativamente do Grupo Alerta Pernambués (GAP), que oferece cursos gratuitos de karatê, boxe, zumba, informática, inglês e outras formações para jovens e adultos. “Temos ações voltadas para toda a população”, destaca.

Essa visão é compartilhada pelo ex-vereador e ativista social Luiz Carlos Suíca, que também atua no GAP e em outras iniciativas, como a Cozinha Comunitária. “São vários os projetos sociais na região, graças à força de vontade de muitas lideranças sociais e à integração da comunidade”, afirma. Para ele, as parcerias com empresários e comerciantes locais também são cruciais para mitigar a fome. “A Cozinha Solidária tem raízes no Centro Social Urbano (CSU), e mostra que o apoio do Estado e da sociedade civil é fundamental”.
Estado presente: política pública e ação social
A Cozinha Comunitária e Solidária, citada por Suíca, foi instalada em março deste ano e é uma das ações implementadas pela Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social (Seades). Voltada ao combate à insegurança alimentar, ela beneficia diretamente moradores em situação de vulnerabilidade de Pernambués.
O bairro também conta com um importante equipamento público, o Centro Social Urbano (CSU), que oferece uma variedade de serviços: cursos de formação, atividades culturais, atendimento a idosos, ações de lazer e convivência. O local faz parte de um programa estadual que prevê investimento superior a R$ 100 milhões para a reforma e revitalização de unidades semelhantes em Salvador e no interior.
Na cultura, um dos braços que ergue a bandeira, inclusive da resistência, é a poetisa, recitalista, pedagoga, arte educadora e gestora cultural Joanice Marques, mulher indígena que nasceu e vive em Pernambués há quase 50 anos. “Sempre participo para promover a interação com os outros bairros, promovendo feiras, roteiros turísticos, rodas de conversa e homenagens às moradoras antigas. Mas toda e qualquer ação deve ser discutida e aprovada pela comunidade envolvida”, reforça.
Para Joanice, Pernambués é rico em cultura, mas carece de infraestrutura adequada. “Temos muita gente boa aqui, como Isabel Dórea e Negro Davi, são artistas talentosos desde o artesanato até o cinema, música… Nosso sonho era que o Castelo não fosse destruído, para fazermos um grande centro de arte, cultura e inclusão, mas aconteceu, infelizmente. Mesmo assim seguimos na luta. Aqui tem muita arte, muita vida! Temos muita coisa, precisamos é de espaço adequado para colocar tanto projeto e artistas!”, clama.
Ela atua como cogestora no Coletivo Cultarte, formado por artesãs, e participa da Operadora de Receptivos do Antigo Quilombo Cabula (AQC), com reuniões semanais na UNEB. “Discutimos os projetos e vendemos os artesanatos feitos por nós. É uma forma de gerar renda e valorizar nossa cultura”.
O Antigo Quilombo do Cabula não é um espaço físico; são ações de resistência histórica, que engloba diversos bairros, incluindo Pernambués. As iniciativas, como o Projeto TBC Cabula (Turismo de Base Comunitária), buscam valorizar o patrimônio cultural e ambiental da região, capacitar moradores para o turismo comunitário e criar roteiros que contem a verdadeira história local.
Os objetivos são muitos: reconhecimento das raízes afro-brasileiras, geração de renda, fortalecimento da autoestima coletiva e difusão de conhecimento. Isso se dá por meio de feiras, eventos culturais, museus virtuais, rodas de conversa, grupos artísticos e ações educativas em escolas. Terreiros de candomblé e associações de moradores também atuam como guardiões dessa memória.
Rosa Menina: o legado dos Ternos de Reis
Um dos maiores símbolos da cultura popular de Pernambués é o Terno de Reis Rosa Menina, fundado em 1º de novembro de 1945 por Silvano Francisco do Nascimento e Armando do Nascimento. Nessa época, o grupo chegou ao bairro levado por Silvano, que posteriormente casou-se com Dona Luiza Cruz do Nascimento, responsável pelo figurino e pela organização de outros dois ternos locais. Desde então, apenas o Rosa Menina permaneceu ativo.
O Terno representa não apenas a tradição dos folguedos populares que remontam à visita dos três Reis Magos ao Menino Jesus, mas também a força de uma comunidade negra que resiste e celebra sua cultura. “O Rosa Menina representa um legado representativo da vida cultural dos nossos pais, é uma tradição imortal que nos realiza ano após ano”, afirma Francisco Nascimento, filho de Silvano e Luiza.

A estrutura do grupo é familiar e colaborativa: Isabel Nascimento Dórea, coordenadora geral, realiza os ensaios; Francisco cuida das apresentações; Geraldo puxa o terno nas ruas; Regina cuida dos figurinos; Efigênia gere a parte administrativa; Márcio cuida da música; e João da sonorização. “É uma entrega coletiva dos filhos de Luiza e Silvano, que atendem um pedido célebre: ‘Não deixem o nosso terno morrer!’”, reforça Isabel.
Apesar da importância cultural, o grupo enfrenta dificuldades: “Falta de apoio financeiro, ausência de editais específicos, espaços para ensaios e apresentações, e desinteresse da juventude. Perdemos mestres e mestras sem que haja sucessores”, lamenta Francisco. Mesmo assim, o Terno segue firme, apresentando-se em eventos como o Fuzuê, a Festa de Reis na Lapinha e a celebração do Bonfim.
Resistência que pulsa e reinventa
Pernambués é uma encruzilhada de memórias, sonhos, lutas e resistências. Um quilombo urbano que resiste ao apagamento, seja pela arte, seja pela fé, seja pelo trabalho coletivo. É onde jovens aprendem capoeira como instrumento de disciplina e identidade. Onde a sopa quente e o pão doados são mais do que alimento: são gestos de cuidado e pertencimento.
O bairro, que ainda carece de políticas públicas assertivas, mostra que o verdadeiro desenvolvimento parte do chão da comunidade. De iniciativas como as de Mestre Roque, Tuka Perez, Joanice Marques, Isabel Dórea, Francisco Nascimento e tantos outros nomes que fazem da cultura, da solidariedade e do afroempreendedorismo ferramentas de transformação social.