
Poucos são os bairros em Salvador que podem usufruir do privilégio de estar ao lado do mar, especialmente quando se fala de bairro popular. A Boca do Rio, com muito orgulho, está fora dessa lista. Com quase 40 mil moradores, a comunidade dorme e acorda ao som das ondas na orla de Salvador.
Apesar de numeroso, o bairro tem alma de cidade pequena: todo mundo se conhece, garante quem mora ali. São cerca de 38,8 mil moradores, segundo os dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ajudam a explicar a vida pulsante nas ruas: 54,3% são mulheres e 45,7% homens; a faixa de 30 a 49 anos concentra 33,9% da população, sinal de um bairro majoritariamente adulto e trabalhador.
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Quem dá o tom de pertencimento é o comunicador Marcelo Garcia, morador há mais de 20 anos e fundador do portal comunitário Boca do Rio Magazine. “Sobre a Boca do Rio, eu sou suspeito pra falar, né? Mas pra mim é um dos melhores bairros aqui de Salvador, dos bairros populares… Ele tá no ranking, no top 3 aí fácil”.

Para ele, o que resume a qualidade de vida na região é o fato de se ter um tecido social ainda muito próximo. “Boca do Rio é um bairro muito familiar… a gente ainda preserva aquele aspecto de bairro familiar… muita gente se conhece; muita gente sabe que ‘fulano’ é filho de ‘ciclana’, é sobrinho, é primo; então há esse respeito ainda”.
Marcelo também destaca o clima nas ruas.“A gente ainda consegue andar com uma certa tranquilidade… a gente ainda consegue ter essa liberdade de caminhar”, diz. Mas há desafios, claro. “A gente tem uma certa dificuldade em transporte público… ainda precisa melhorar um pouquinho, mas em geral vivemos muito bem”, conclui.
Se a vizinhança é de laços fortes, o futebol é parte dessa história. Há 41 anos, Luís Mário Correia, o Marão, com a comunidade, consolidou a Liga de Futebol da Boca do Rio, hoje referência no Campo do Marão, que é o maior campo de várzea de Salvador.
“Graças a Deus, tudo deu certo aqui há 41 anos… Formando cidadãos, dando oportunidade ao pessoal do próprio bairro, e hoje a gente recebe até pessoas de fora”, disse de Marão, que fundou a liga e batalhou pelo campo. “Não existia aqui na Boca do Rio, a a gente ia para outros bairros para jogar”. Alexandre, vice-presidente da liga, falou sobre os ‘olhos que crescem’ pela localização. “Já tentaram construir prédio aqui, porque a localidade dele é muito favorável, de frente para a praia, perto do Centro de Convenções [...] Já tentaram tirar várias vezes esse campo da gente, mas esse campo é da comunidade”, garantiu.

A Boca do Rio é feita de contrastes: de um lado, a história de um bairro que cresceu em meio às marés, carregando lembranças de feiras livres e pescadores; do outro, a vitalidade de um povo que reinventa a cada dia sua forma de viver a cidade. É nesse encontro entre o passado e o presente, entre a tradição e o movimento, que o bairro revela sua força. Entre o cheiro da comida de rua, o som dos ônibus que cruzam a avenida e o vai e vem de gente que nunca deixa o lugar perder a vida, a Boca do Rio se afirma como um pedaço essencial de Salvador , que é vibrante, resistente e profundamente humano.
Estrutura cada vez melhor
A Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) está investindo R$ 3 milhões em obras de ampliação do sistema de esgotamento sanitário da Boca do Rio, beneficiando diretamente cerca de 1.500 moradores das ruas José Abade, Bernadete Dias e Professor Pinto de Aguiar.
As intervenções incluem a construção de uma nova estação elevatória, que será responsável por bombear os esgotos da região para tratamento adequado, além da implantação de rede coletora e ramais prediais. A previsão é de que as obras sejam concluídas até o final deste ano. De acordo com a empresa, o objetivo é reduzir o descarte irregular de esgoto na drenagem, o que deve trazer mais saúde e qualidade de vida para a população do bairro.
Segundo o gerente da área de Expansão e Obras de Salvador e RMS, Sinval Garcia, a iniciativa é um desafio técnico por se tratar de uma área adensada e de topografia irregular, mas representa um avanço importante para a comunidade. A Embasa destaca ainda que ações semelhantes já vêm sendo executadas em bairros próximos, como Pituaçu, e reforça o compromisso com o desenvolvimento sustentável e a universalização do saneamento básico em Salvador.
O bairro é um celeiro de talentos
Um fato que não se pode negar ou esconder é que esse bairro é um verdadeiro celeiro de personalidades e talentos, nas mais diversas áreas. O bairro revela gente! Uma dessas figuras é o cantor de samba Cinho Almeida, que com orgulho diz que é da Boca do Rio desde a barriga de sua mãe. “Sou da Boca do Rio desde a barriga… O povo me abraça e me sinto muito feliz por tudo que a gente vem conquistando. Boca do Rio é sem explicações, amo meu bairro!’, disse o cantor.

No esporte, o lutador de MMA Ednaldo Lula faz questão de valorizar suas raízes, já que ele é cria do bairro e fruto de um projeto social de lá, o Boa Luta. Hoje, como atleta, é referência para jovens do bairro. “No projeto teve o Júnior Cigano, Casa de Sapatos, teve eu, que foram atletas que despontaram pelo mundo. E são esses atletas aí que as crianças lá se inspiram e isso é gratificante”.
Tambores que mudam muitas vidas
O som dos tambores ecoa no Beco do Cuscuz, na Boca do Rio, onde o projeto Cri Levada tem mudado a realidade de crianças, jovens e adultos da comunidade. Criado em 2014, durante a Copa do Mundo, a iniciativa nasceu da inquietação do percussionista George “Sopa”, que já integrou grupos como Timbalada e Banda Beijo.
O projeto começou com apenas 12 alunos e já chegou a reunir mais de 200 participantes no beco. Hoje, atende desde crianças de 2 anos até adultos, sempre de forma gratuita, com instrumentos e figurinos oferecidos sem custos. “Só é ter a boa vontade e o despertar do talento”, reforça o mestre.

Mais do que aulas de percussão, o Cri Levado se tornou um espaço de convivência, aprendizado e paz. Para Sopa, a música ajudou a transformar a imagem da Boca do Rio, antes marcada pela violência. “Com um pouco da cultura, com um pouco da paz que o tambor transmite, a gente conseguiu diminuir isso”, destaca.
Além do impacto social, o projeto tem revelado talentos que ganharam reconhecimento, como o cantor Cinho Almeida, que começou na música com as aulas do Cri Levada, mostrando a força da cultura local. Muitos ex-alunos seguem carreiras na música, outros chegam à pós-graduação e contribuem para projetos sociais, mantendo vivo o espírito de comunidade e solidariedade. E quando questionado sobre o que torna o bairro especial, ele não hesita: “A Boca do Rio é massa porque a cultura vangloria de todas as formas aqui. A gente desperta pro mundo muitos talentos escondidos”.
