
Neste sábado (9), as ruas de Saubara, cidade do Recôncavo Baiano, se transformam em mar aberto para o desfile dos marujos da tradição popular.
É o último dia do XII Encontro de Cheganças, Marujadas e Lutas entre Mouros e Cristãos da Bahia, uma celebração que, mais do que exibir performances folclóricas, reafirma a força de uma memória ancestral compartilhada por dezenas de comunidades espalhadas pelo estado.
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Desde 2013, o evento faz de Saubara o ponto de encontro anual desses grupos que dramatizam, em versos e coreografias, passagens históricas e simbólicas do Brasil, muitas vezes esquecidas pelos livros. O encontro ganhou ainda mais importância este ano, após o reconhecimento da manifestação como Patrimônio Imaterial da Bahia, em 2025.

Mais de 20 grupos vindos de nove territórios de identidade participaram de rodas de conversa, oficinas, premiações e desfiles pelas ruas. Hoje, o encontro atinge seu ápice, com apresentações que unem tradição, religiosidade, crítica social e resistência cultural.
Marujos em terra firme
A chegança é uma “dança dramática”, expressão cunhada por Mário de Andrade para classificar manifestações populares com partes faladas, cantadas e encenadas. Em cena, os participantes representam marujos em embarcações que atravessam mares reais ou imaginários. A Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, anfitriã do encontro, tem origem em Saubara e atravessa gerações.
"É uma manifestação cultural que se constitui a partir das memórias marítimas, das navegações, da diáspora africana, dos conhecimentos indígenas. Tudo isso se entrelaça na história da nossa comunidade", explica Rosildo Rosário, coordenador do encontro e mestre da Fragata Brasileira. Ele lembra que a data de hoje também tem valor religioso.
No passado, no dia 4 de agosto, os marujos se reuniam para agradecer a São Domingos de Gusmão, padroeiro da cidade, pelas vitórias. Então repetimos esse trajeto, com o mesmo espírito nesta data.
Rosildo Rosário

A dimensão política do evento também é destacada por Rosildo. "Neste sábado celebramos em conjunto com outros grupos, discutimos políticas públicas e trocamos experiências sobre os desafios de manter essas manifestações vivas".
Tradição que se herda
A transmissão entre gerações é um dos pilares da chegança. No cortejo, é comum ver homens mais velhos ao lado de crianças, todas com trajes de marujos e pandeiros nas mãos. Um dos exemplos é Matheus Conrado, de 9 anos. "Meu bisavô era da chegança. Eu ia tocando atrás, brincando, e com cinco anos comecei a ensaiar. Hoje já toco, danço e canto. Isso tira a tristeza do coração", conta, com entusiasmo.

Zinoel Fontes de Araújo, filho de um dos fundadores da formação atual da Fragata Brasileira, também encontrou na chegança uma herança familiar e espiritual. "Pra mim, que sou de religião de matriz africana, cantar vestido de marujo representa uma ideologia de vida. Eu canto para os marujos, canto pra mim, pros meus colegas dos dois lados do mundo".

Já para Luís Fernando dos Santos, também da Fragata Brasileira, a chegança é o folclore que mais mexe com suas raízes. "Aqui tem vários folclores, mas eu gosto mesmo é da regança. Ela veio pelos navios negreiros e ficou por aqui. A Bahia toda abraçou”, conta ele, que vê na manifestação uma ponte entre fé e cultura popular. “Em Saubara, a igreja católica também abraçou a chegança. A comunidade toda se envolve".

Lutas e memórias
Os enredos das apresentações são diversos. As Cheganças de Mouros ou Embaixadas encenam as batalhas entre cristãos e mouros na Europa medieval, com reis e rainhas no enredo.

Já as Marujadas miram a história brasileira: a independência da Bahia, a invasão holandesa, a diáspora negra e outros episódios são narrados em versos e marchas, carregando o público para dentro de episódios muitas vezes invisibilizados.
Mesmo com diferenças temáticas, os grupos compartilham elementos como o uso do pandeiro e o vestuário inspirado nos marujos. Cada um imprime sua identidade, refletindo o cruzamento de culturas presente na Bahia.