
A chamada PEC das Domésticas, emenda constitucional que garantiu direitos trabalhistas aos trabalhadores domésticos, tem mais de 10 anos desde sua aprovação. Apesar do avanço, histórias de mulheres resgatadas em casas de famílias de classe média alta e alta, são contadas todos os anos, e em uma quantidade cada vez mais alarmante. Chamada por ativistas de escravidão moderna, e por órgãos governamentais de trabalho de análogo à escravidão, a exploração de mão de obra, majoritariamente de pessoas negras, ainda é uma realidade nos lares brasileiros.
Segundo o Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT-BA), entre 1995 e 2024, 28 pessoas foram resgatadas do trabalho doméstico análogo ao escravo no estado. Deste número, 25 aconteceram somente nos últimos cinco anos, devido à implantação de uma estratégia do MPT-BA para lidar com a lei que impede a ação de agentes dentro de domicílios.
“Quando a gente está falando de empresa ou de âmbito rural, temos uma organização de trabalhadores e do sindicato, é um conjunto. Eles não estão em uma residência, em um domicílio, trabalhando sozinhos muitas vezes. Isso sempre foi uma grande dificuldade, porque o domicílio tem uma proteção constitucional de inviolabilidade, que garante que só em caso de flagrante se possa entrar sem autorização judicial”, explicou Manuella Gedeon, Coordenadora de Combate ao Trabalho Escravo na Bahia, em entrevista ao MASSA!.

Essa dificuldade de acesso garantiu, por muitas décadas, que mulheres continuassem a ser exploradas dentro de residências em todo o Brasil. Uma dessas mulheres é Sônia Maria de Jesus, negra e deficiente auditiva, que foi sequestrada aos 10 anos por uma professora, em São Paulo, e levada para ser escrava doméstica na casa de uma família nobre, em Santa Catarina. Após 40 anos de servidão, sem documentos de identificação e sem qualquer contato com a família, ela conseguiu ser resgatada por auditores do MPT, mas, por uma decisão judicial, o homem que a explorou por décadas foi autorizado a levá-la de volta ao controle da família.
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Exemplo de luta
A presidente do Conselho Nacional de Trabalhadores Domésticos e fundadora do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico/BA), Creuza Oliveira, denunciou que casos como o de Sônia não são isolados. “Ainda têm muitos juízes que fecham os olhos para as trabalhadoras que são resgatadas do trabalho escravo. Uma trabalhadora é resgatada depois de 40, 50 anos de escravidão, e a justiça só dá de indenização 150, 200 mil. Um absurdo, uma pessoa que foi escravizada a vida toda, não teve infância, não teve juventude, não teve vida, o único ambiente que ela conhece é o do trabalho”, bradou para a reportagem doMASSA!.
Ainda têm muitos juízes que fecham os olhos para as trabalhadoras que são resgatadas do trabalho escravo. Uma trabalhadora é resgatada depois de 40, 50 anos de escravidão, e a justiça só dá de indenização 150, 200 mil"
presidente do Conselho Nacional de Trabalhadores Domésticos Creuza Oliveira
A própria Creuza é um exemplo de exploração e um retrato de como o racismo estrutural empurra mulheres negras para o trabalho doméstico. Vítima de trabalho infantil, a baiana começou a ser explorada aos 6 anos e só recebeu seu primeiro salário, abaixo do mínimo da época, aos 21. Motivada a concluir seus estudos, mas sem poder parar de trabalhar, Creuza concluiu o ensino médio somente aos 30 anos. A ex-presidente do Sindoméstico/BA relatou as dificuldades que passou para se formar. “Eu dormia na sala, era muito cansativo. Eu exercia diferentes funções dentro daquela casa durante, todo o dia, mas ia para a escola, mesmo cansada, pois queria me formar. Minha luta é essa, a luta do sindicato é essa: seja trabalhadora doméstica, mas com direitos e com respeito”.

Doutora Honoris Causa eleita pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e principal nome da luta sindical da categoria no Brasil, ela atuou durante anos para a aprovação da PEC das Domésticas, aprovada em 2013, que garante maiores direitos a esses trabalhadores e que antecedeu a Lei dos Trabalhadores Domésticos, com 10 anos completados em junho deste ano. Creuza, atualmente, lidera a Secretaria de Capacitação do sindicato, pasta que forma domésticas em cursos de diferentes áreas, em Salvador e em Feira de Santana.
Minha luta é essa, a luta do sindicato é essa: seja trabalhadora doméstica, mas com direitos e com respeito"
presidente do Conselho Nacional de Trabalhadores Domésticos Creuza Oliveira
Impunidade
Para o sociólogo e cientista social Filipe Baqueiro, a falta de punição contra esse tipo de exploração só ajuda a manter o costume na sociedade atual, pois os criminosos recebem baixos ou nenhum dano financeiro, tampouco são responsabilizados criminalmente no processo. “Na medida em que não é oneroso judicial e financeiramente para essas pessoas que mantêm trabalhadores em regime análogo à escravidão, a tendência é que elas sigam reproduzindo este tipo de prática. Quando a lei é cumprida com rigor, a tendência é que não se repita esse tipo de prática”, explicou o professor ao MASSA!.
Justamente por não conhecerem outro modo de vida, as vítimas precisam de acompanhamento psicossocial e de uma ressocialização após serem resgatadas, para que não corram o risco de voltarem ao local de exploração por se sentirem sozinhas ou desabrigadas. De acordo com Manuella Gedeon, como essas trabalhadoras são levadas ainda crianças para esses locais e resgatadas quando já estão idosas, algumas delas se recusam a ser levadas por se sentirem parte daquela família, mesmo não tendo um tratamento digno ou direito à herança, por exemplo.
Isolamento social
Segundo o Sindoméstico, em alguns casos acompanhados pelo sindicato, as trabalhadoras chegaram a ser ameaçadas com armas de fogo ou trancadas em quartos quando os patrões não estavam em casa, sendo mantidas em cárcere privado por longos anos.
As vítimas desse tipo de exploração raramente conseguem manter contato com suas famílias ou com algum ciclo social, pois são privadas de liberdade por seus agressores. Algumas chegam a ser passadas entre gerações, como se fossem uma propriedade da família, escancarando que, por ter sido parte da sociedade brasileira por quase 400 anos, a exploração do negro ainda não saiu do costume de quem mais se beneficia com isso.
Racismo e denúncia
O racismo, que põe a população negra em papel de serventia e mão de obra a ser explorada, é o principal fator que torna as ações dessas pessoas válidas em suas consciências. “Esse é um dos grandes problemas sociais não resolvidos em nosso país até os dias atuais. Por isso, ainda hoje, a gente consegue localizar esse tipo de relação de trabalho análogo à escravidão em larga escala no Brasil”, explicou o sociólogo.
Creuza Oliveira defende abertamente a política de cotas, por acreditar que a iniciativa ajuda a reparar os danos causados à sociedade negra, principalmente os descendentes dessas mulheres que não tiveram oportunidades de estudar por serem escravizadas desde a infância, mas que podem ver seus filhos alcançarem essa realidade. “Quem critica as cotas, eu digo que é falta de conhecimento. Os brancos sempre tiveram todas as cotas para eles, sempre foi tudo deles. Por isso que a gente tem que lutar, meter o pé na porta e ocupar esses espaços”.

Denuncie
As denúncias anônimas são as principais formas de combate ao trabalho escravo doméstico. Por conta das rigorosas regras de privacidade, o MPT só pode autuar e agir em casos com uma série de provas. Por isso, no momento da denúncia devem ser informados os nomes dos envolvidos, seja explorado ou explorador, e endereço completo. As denúncias podem ser feitas pelo Disque 100, do site do MPT-BA ou no aplicativo MPT Pardal, e presencialmente, em qualquer unidade do MPT.
*Sob supervisão do editor Jacson Brasil
