Maca armada, óleo e um ambiente relaxante: assim é o ritual básico de um massoterapeuta. Mas, no grupo Massagem às Cegas, em Salvador, as mãos que hoje conduzem atendimentos também atravessaram longos perrengues até encontrar na massoterapia um novo fôlego de vida. Deficientes visuais com visão subnormal — popularmente chamada de baixa visão — mostram que é possível repaginar a carreira depois de “muita porrada” do destino.
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Entre alguns cantos da capital baiana, a Biblioteca Central do Estado da Bahia, nos Barris, virou o point fixo de Cláudia Lima, idealizadora do projeto em parceria com a Associação Baiana de Cultura e Inclusão (ABACI), e das massoterapeutas que seguem firme com ela. É lá que o grupo monta a estrutura, acolhe o público e entrega um trabalho que surpreende quem chega desavisado.
Cláudia passou a não enxergar depois de adulta, aos 22 anos, quando desenvolveu glaucoma. Antes disso, havia se formado em História e trabalhava como professora, mas deixou a sala de aula à medida que a visão diminuía.
Além disso, convive com a Síndrome de Marfan, condição hereditária que provoca problemas cardíacos e oftalmológicos. A transição para a massoterapia não foi imediata e exigiu que ela reimaginasse a própria carreira.

E foi inspirada pela própria trajetória que idealizou o Massagem às Cegas. Ela conta que percebeu a importância de criar um espaço de inclusão para que outras pessoas com deficiência visual encontrassem novas oportunidades profissionais:
“Eu queria criar um espaço onde pessoas com deficiência visual pudessem se reconectar com suas habilidades, mostrar seu talento e sentir que têm espaço no mercado de trabalho.”
A experiência da ex-cozinheira de 62 anos, Magali Oliveira, também ilustra a transformação que o projeto proporciona. Se antes conquistava o coração do cliente pelo estômago, hoje em dia é pelo tato. A mulher descobriu a massoterapia como uma porta de saída após perder completamente a visão, também devido ao glaucoma.

Formada em gastronomia, teve a rotina profissional interrompida e buscou alternativas para se manter ativa, encontrar sentido e aplicar seus conhecimentos. O contato com o público e a possibilidade de aliviar dores transformaram a rotina profissional de Magali.
“A massagem é uma troca de energia, é você curar pelas mãos. É gratificante quando uma pessoa levanta da sua maca ou de sua cadeira quick, olha para você e diz: ‘Amei, adorei, você tem a mão de fada’, recebe um abraço… isso é muito gratificante. É ser elogiada por algo que você fez de bom, é acordar e ter a certeza de que você é útil em alguma coisa”, vibra.
É ser elogiada por algo que você fez de bom, é acordar e ter a certeza de que você é útil em alguma coisa
Filho, o alicerce de Meirinha
Outra história de superação é a da dona de casa Lucimeire Ferreira, carinhosamente chamada pelas colegas de ‘Meirinha’. Integrante do coletivo há quatro anos e mãe de dois filhos, ela contou que começou a perder a visão enquanto jovem, aos 21 anos, quando contraiu uma bactéria através de um pelo de gato. Na época, se preocupou com o filho pequeno e considerou que não teria capacidade de criá-lo sozinha.
Nos primeiros anos da doença, o garoto, que tinha 2 anos, se tornou seu maior alicerce. A presença dele e a própria fé ajudaram a enfrentar os medos e inseguranças diárias.
“Para mim, foi muito difícil no começo, porque meu filho tinha dois anos e eu me deparei com a situação de que achava que teria que entregá-lo para outras pessoas criarem, eu achava que não teria essa capacidade. Mas desde o início ele me mostrou que, mesmo devido à minha deficiência, eu era capaz de crescer, criar ele”, relata.
Abaixo de Deus, eu tive meu alicerce, que foi meu filho

Ao descobrir a massoterapia, Meirinha percebeu que poderia reconstruir sua rotina profissional, mas também sua autoestima e independência. A prática se tornou uma ponte entre sua realidade antes da deficiência e um futuro em que podia exercer um trabalho qualificado:
“Antigamente eu era só dona de casa, não tinha nenhum emprego fixo. Mas, após a perda da minha visão, a minha descoberta na ‘Massagem às Cegas’ abriu a porta para mim. Fiz o curso de massoterapia, trouxe para mim essa realidade e me mostrou que, mesmo na perda da visão, eu poderia me encaixar em alguma coisa, me encontrar.”

Para além da prática terapêutica, Lucimeire também encontrou no jiu-jitsu um espaço que a ajudou a lidar com a perda da visão e a fortalecer a autoconfiança.
“Eu também me encontrei no jiu-jitsu, que foi um porto seguro, porque na época eu estava meio tristezinha devido à perda da visão. Foi uma porta maravilhosa de incentivo para que as pessoas entendam que não é a deficiência que limita a gente, a gente que limita ela”, conta.
Medalha heroica
Mas Meirinha não é a única apaixonada por esportes no grupo. A fisioterapeuta e massoterapeuta Selma Calazans, de 53 anos, também encontrou na atividade física uma forma de enfrentar os desafios da baixa visão. Natural de Ilhéus, convive com a condição há 32 anos, causada por uma cicatriz de coriorretinite decorrente de toxoplasmose, e se mudou para Salvador em busca de diagnóstico e novas oportunidades.
Ela integrou a equipe paralímpica do projeto Remo Sem Fronteiras e conquistou, em 2008, a primeira medalha de bronze do Brasil no remo durante os Jogos de Pequim. “Ganhamos a medalha de bronze com uma equipe formada apenas por baianos e deficientes físicos e visuais. Foi a primeira medalha histórica do Brasil no remo”, relembra.

Selma perdeu a visão enquanto dormia e, desde então, usa prótese no olho esquerdo, enxergando pouco com o direito. Apesar das limitações permanentes, encontrou na massoterapia uma maneira de se reinventar profissionalmente. Já conhecedora do corpo humano, aplicou os conhecimentos adquiridos durante a faculdade de fisioterapia.

“Não tem óculos, não tem cirurgia, não tem nada que me faça voltar a enxergar, porque está lá no nervo óptico, lá no fundo. Eu tenho o hábito de dizer, brincando, que é uma broca no fundo do zóio. E foi assim que vim para Salvador e posteriormente conheci o Massagem às Cegas. Mesmo com todas as dificuldades, eu amo meu trabalho”, explica.
Parto da neta

Além das conquistas esportivas e profissionais, Selma equilibra a vida pessoal com a profissional, sendo mãe e avó. A experiência mais marcante, segundo ela, foi fazer o parto da neta:
“Deus me deu a honra e a glória de fazer o parto, porque ela nasceu em casa. Foi um momento único. Sentir que pude ajudar e receber a confiança da minha família me trouxe uma alegria imensa e mostrou que consigo contribuir na vida das pessoas que amo”, revela.
Nas palavras do grupo Massagem às Cegas, cada história mostra que deficiência não é barreira. É talento, coragem e dedicação em abrir caminhos onde parecia não haver saída.
*Sob a supervisão do editor Pedro Moraes
