
A maré baixa é o relógio que comanda a rotina das marisqueiras nas praias no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Por décadas elas transformaram a coleta de moluscos e crustáceos em sustento. Mas existe um outro tempo que elas aprenderam a marcar com precisão: o da vida real, da luta diária, da maternidade e do 'corre' para criar os filhos.
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Como forma de homenageá-las no Dia das Mães, celebrado neste domingo (11), o Portal MASSA! foi até a Praia de Tubarão, para ouvir histórias de algumas dessas mulheres, todas ligadas à Associação de Pescadores, Marisqueiras e Assemelhados de Joanes e Adjacências (Apemja), que há 25 anos reúne trabalhadoras da pesca na região.
Luísa de Jesus, de 71 anos, é uma das veteranas do grupo. Hoje aposentada, ela conta que a tradição da pesca e da mariscagem vem de família e foi passada de geração em geração. “Minha mãe, meu pai, todo mundo já era pescador. Fui criada no marisco e criei meus filhos da mesma forma”, diz. Nas décadas em que trabalhou nas marés de Salvador, enfrentou os altos e baixos do ofício. “Antigamente, a gente pegava dois baldes de marisco e vendia bem. Hoje em dia, às vezes, não pega nem meio quilo”, relata.

Mãe de filhos, hoje, adultos e empregados, dona Luísa enxerga no próprio percurso o retrato de muitas mulheres que viram no marisco a única alternativa de sustento, especialmente em momentos em que o marido estava desempregado. "Quando meu marido ficava sem trabalho, era a mariscagem que segurava as pontas. Eu sabia que, se não fosse isso, talvez não tivéssemos como pagar as contas em casa", lembra.
Pau para toda obra
E é com as mãos nos mariscos que ela e suas companheiras preservam silenciosamente suas tradições, enquanto resistem à histórica marginalização da profissão. A coleta nas praias de Salvador é, para muitas, o único meio de vida. O trabalho envolve a captura de caranguejos, guaiamuns, lambretas, sururus, siris e ostras, e ocorre em três etapas: coleta, limpeza e comercialização. Com o produto final em mãos, muitas marisqueiras vendem no fim do dia, em bares, restaurantes e estações nas redondezas o que conseguiram capturar após uma árdua jornada de trabalho. Tudo isso, muitas vezes, sem qualquer equipamento adequado para proteção.

Ângela Maria, de 59 anos, descreve o dia a dia como exaustivo. Mãe de três filhos, agora já crescidos, ela diz que o trabalho sempre exigiu esforço físico e mental, mas que não teve escolha a não ser conciliar as duas tarefas. “Quando os meus filhos eram pequenos, eu deixava na creche, pedia para alguém levar e ia mariscar. Os que já eram mais crescidinhos ficavam em casa ou vinham comigo para a praia. Foi difícil, mas é o que eu faço, o que aprendi a fazer desde cedo”, diz.

As dificuldades aumentam no período chuvoso, quando os mariscos ficam mais escassos e os mosquitos viram um incômodo constante. “Agora, no inverno, além da dificuldade de achar marisco, a muriçoca toma conta. Não tem como trabalhar com a pele toda picada, então a gente acaba passando óleo diesel para espantar o mosquito”, relata.
Falta estrutura, sobra resistência
Sem apoio técnico ou equipamentos adequados, as condições de trabalho se tornam ainda mais desafiadoras. Protetor solar, luvas e repelentes são raridade entre o grupo de mulheres, que se dividem entre as praias do Subúrbio de Salvador e Simões Filho. No improviso, elas usam o que têm. O óleo diesel, por exemplo, é aplicado na pele para aliviar as picadas de insetos.
O tempo também cobra seu preço. Muitas marisqueiras sofrem com dores crônicas causadas pelas longas horas de trabalho curvadas sobre a areia e a água. Kátia Selene, 57 anos, convive com uma hérnia de disco provocada pelos anos de esforço físico contínuo. “Ficar abaixada o tempo todo, com a coluna torta, acaba prejudicando a saúde da gente”, conta.

Já sua amiga, Lucineia Santos, de 48 anos, revela que chegou a sonhar com outro caminho. “Queria ter feito faculdade de enfermagem, mas não deu”, admite. Apesar das dificuldades, as mulheres continua na profissão, mesmo sem que seus filhos tenham seguido o mesmo caminho. “Sempre amei o que faço”, afirma.

Vida suada, mas digna
Há cerca de 10 anos como marisqueira regulamentada, Ana Paula, 48 anos, que segue a profissão desde pequena, influenciada pelos pais, conhece bem as dificuldades. Ela explica que, em muitos momentos, precisou complementar a renda com outros trabalhos. “O dinheiro da mariscagem nem sempre dá para pagar as contas de casa”, lamenta.

Além da sobrecarga física, Ana também enfrentou preconceito. “Quando a gente ia pescar, as pessoas reclamavam do cheiro do marisco. Mas, no final, eu sabia que valia a pena, porque eu dava aos meus filhos uma vida digna”, conclui.
*Sob a supervisão do editor Jacson Brasil.