Apesar de conquistas importantes, como a Lei de Cotas e o reconhecimento do Dia da Consciência Negra, os desafios são vastos. Ainda hoje, o racismo impede que grande parte da população negra tenha acesso a oportunidades iguais em educação, saúde e emprego. Para superar essas barreiras, é essencial compreender as estratégias que foram e ainda são usadas nessa luta histórica por igualdade e dignidade.
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Cada fase dessa trajetória exige criatividade e coragem para lidar com as consequências do racismo. Em uma sociedade que perpetua desigualdades, lideranças negras, como educadores, empreendedores e ativistas, têm se destacado ao propor soluções para transformar a realidade.
O racismo estrutural atravessa todas as dimensões da vida no Brasil, conforme Vilma Reis, socióloga, professora e ativista do movimento de mulheres negras, que destaca que o problema é antigo e requer ações coordenadas. “Mais de 130 anos após a abolição, ainda enfrentamos barreiras enormes em serviços públicos, saúde, educação e nos meios de comunicação. Para superar isso, precisamos democratizar as estruturas de poder e implementar políticas afirmativas que realmente façam diferença”.
Segundo Vilma, a luta antirracista precisa ser abrangente, contemplando políticas públicas, iniciativas educacionais e a democratização dos meios de comunicação. A ausência de equidade racial nos espaços de decisão política e econômica reforça a necessidade de estratégias claras para combater essas desigualdades.
Coletividade
A socióloga, professora e ativista também aponta que a resistência não pode ser solitária. “A luta antirracista é um compromisso coletivo. Todos precisam reconhecer o racismo como um problema estrutural e agir para desmantelá-lo em todas as esferas”.
Para o Dr. Honoris Causa Hélio Santos, pela UFBA, e presidente do Conselho do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais, a principal estratégia de combate ao racismo é a política pública, elaborada a partir da coletividade.
“O combate ao racismo se dá mediante políticas públicas. O racismo não é algo que você combate no campo individual. Já existem leis. O racismo que se combate apenas com ações individuais contra atos isolados de racismo não resolve o problema”, explica.
Um exemplo de política pública dado pelo professor é a Lei 10.639, que tornou obrigatória a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio. Considerada um marco no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no Brasil. Mas, para o professor, embora a questão simbólica seja importante na implementação dessa lei, ele avalia que ela nunca foi aplicada.
Neste cenário, ele sugere não só a proposição de políticas públicas como essas, mas também a constante vigilância para saber se estão, de fato, sendo aplicadas.
“O racismo individual, o das pessoas racistas, depende de educação. Você tem, por exemplo, a Lei 10.639, que, na prática, nunca foi plenamente implementada, nem aqui na Bahia, seja na capital ou no interior. Não há nada efetivo para mudar o comportamento racista das pessoas”.
Para Hélio, as dificuldades na implementação dessas políticas e na sua aplicação quando implementadas fazem parte de um sistema. “O racismo se adapta, se ajusta de acordo com a época. Conseguimos implementar políticas afirmativas, como o aumento da população negra nas universidades públicas. Porém, a partir de 2013, os recursos para essas universidades começaram a ser cortados. Ou seja, no momento em que a população negra começa a ocupar esses espaços, aquele ambiente antes de excelência sofre degradação. Isso é uma estratégia”, conta o professor.
Educação
A educação é uma das ferramentas mais poderosas para combater o racismo e promover a igualdade. Vilma Reis enfatiza o papel de projetos educacionais que resgatam a autoestima e a identidade cultural da população negra.
“Projetos como a Escola Criativa Olodum, Escola Mãe Hilda Jitolu e o Ilê Aiyê são fundamentais. Eles mostram às crianças negras que elas têm valor e podem acreditar em um futuro melhor. Mesmo sem tanto apoio governamental, essas iniciativas nos dão esperança”, diz, reforçando o papel da educação como elemento transformador, especialmente em espaços de resistência, como os terreiros de candomblé.
“Os terreiros enfrentam criminalização, mas também são centros de resistência e transformação. Mulheres negras têm usado esses espaços para se preparar para carreiras públicas e construir redes de apoio. Isso é revolucionário”, acrescenta.
A socióloga refere-se ao projeto “Curso e Formação - Mulheres Negras Ocupando o Mundo do Trabalho e Outros Lugares”, que promove curso preparatório para concurso voltado às mulheres negras que integram terreiros na capital baiana. O projeto, ligado ao Terreiro da Casa da Branca e à Coletiva Mahin - Organização de Mulheres Negras para os Direitos Humanos, conta com 19 estudantes que recebem bolsas permanência de R$ 400,00.
“A gente já vê mulheres de várias idades: mulheres mais velhas, mulheres bem jovens, né? Elas estão nos terreiros, como a Casa Branca, o Bogum, o Gantois e tantos outros. Estão lá quase todas as noites, fazendo essas aulas e se preparando para concursos, para carreiras públicas. Enquanto cidadãos, podemos reverter esse cenário organizando ações comunitárias, engajando e convencendo pessoas a lutar pelo bem coletivo”, conta Vilma.
É o que também diz o educador e militante Antonio Jorge Godi. “A educação caseira e o fortalecimento da identidade são essenciais. Crianças negras precisam aprender desde cedo que têm valor e devem se orgulhar de sua história e de suas raízes”.
Antônio Jorge acredita também que, aliada à educação, há outro aspecto importante quando se trata de estratégias na luta contra o racismo: a autoestima. “A construção da autoestima dos nossos filhos é essencial. Eles precisam ter orgulho de quem são, de suas raízes e de sua cultura. Um jovem fortalecido pelo conhecimento e pela autoestima será capaz de enfrentar qualquer desafio”.
“Trabalhei por mais de 30 anos na universidade e vi o quanto isso muda a trajetória dos estudantes. Muitos enfrentam barreiras enormes no ambiente acadêmico, mas aqueles que perseveram se tornam exemplos de resistência e sucesso”, compartilha o professor universitário aposentado.
Vilma lembra que, além de iniciativas comunitárias como o Ilê, a presença negra na universidade é um marco da luta por direitos. Durante 12 anos, ela esteve à frente do Programa de Educação para Igualdade Racial e de Gênero da UFBA, que trouxe jovens negros para o ensino superior. “Muitos desses jovens foram os primeiros de suas famílias a acessar a universidade. Isso é resultado direto da atuação dos movimentos negros”.
Economia
Paulo Rogério Nunes, publicitário, empreendedor e consultor em diversidade, acredita que a economia é um campo estratégico para enfrentar o racismo. Ele argumenta que a inclusão econômica é essencial para superar desigualdades. “O Brasil precisa entender que diversidade não é caridade, mas uma estratégia de desenvolvimento econômico. Incluir a população negra na base econômica gera inovação e crescimento para o país como um todo”.
Ele lidera iniciativas como o Vale do Dendê e a Afro.TV, que promovem a inclusão de empreendedores negros no mercado. “Desde 2016, ajudamos milhares de empreendedores negros no Nordeste a encontrar oportunidades de mercado. A Afro.TV, por sua vez, é uma plataforma que amplifica vozes negras e promove a cultura africana e afro-brasileira”.
Paulo também vê a economia criativa como um motor para a transformação social. “Projetos como o Movimento Black Money são exemplos de como podemos construir um futuro mais justo. Precisamos fortalecer o empreendedorismo negro e criar redes de apoio para superar as desigualdades estruturais”.
A tecnologia é outro campo destacado por Paulo Rogério como ferramenta essencial na luta contra o racismo. Ele lidera projetos inovadores, como o Festival Afrofuturismo, que une tecnologia, arte e cultura para discutir o futuro da diáspora africana. “Em 2023, o festival atraiu mais de 8 mil pessoas e mostrou como a tecnologia pode ser usada para conectar histórias e abrir novas possibilidades”.
Relevância da cultura
O professor aposentado e antropólogo Ordep Serra traz a perspectiva da cultura como um campo estratégico na luta antirracista. Ele destaca que a cultura não apenas reflete, mas também reforça a resistência ao racismo. “O racismo é uma das chaves da sociedade brasileira, um peso terrível que todos têm a obrigação de combater. Isso passa pelo campo da cultura, que é decisivo na luta por igualdade”, argumenta.
Ordep aponta que a cultura afro-brasileira desempenha um papel central na construção da identidade nacional e no fortalecimento da autoestima das comunidades negras. “Iniciativas como o Memorial Zumbi e a Fundação Palmares, das quais participei junto a lideranças como Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, foram passos fundamentais para promover o reconhecimento da cultura negra como patrimônio brasileiro”.
Ele também menciona o papel dos movimentos culturais na conscientização e mobilização contra o racismo. “Eventos como o que teremos agora no dia 26, pela primeira vez, o Novembro Negro da Academia de Letras da Bahia, mostram que a música, a capoeira e outras expressões culturais têm poder transformador. Essas manifestações carregam um discurso político de resistência e dignidade”, afirma.
Para Antônio Jorge Godi, a preservação da cultura negra é também uma forma de empoderamento. “A nossa cultura é rica, diversa e merece ser celebrada. Ela não apenas conta nossa história, mas também nos dá força para enfrentar o racismo. Quem somos como povo? Quem são nossos ancestrais? Essas perguntas precisam ser respondidas com orgulho e respeito”.
Transformação
Apesar dos avanços, os desafios persistem. Vilma Reis aponta que a luta antirracista precisa continuar e ser fortalecida. “Enquanto um compromisso coletivo, a luta antirracista é de toda a sociedade. Precisamos reconhecer o racismo como problema e desmantelá-lo”, reitera Vilma Reis.
Paulo Rogério acredita que as novas gerações desempenharão um papel crucial nessa transformação. “As novas gerações têm uma visão de mundo mais conectada e diversa. Isso será determinante para construir uma sociedade mais igualitária”.
A luta pela igualdade racial no Brasil é uma jornada que exige estratégias integradas, mobilização comunitária e ação contínua. Seja por meio da educação, da economia ou da cultura, cada frente de resistência contribui para um objetivo comum: a construção de um país mais justo.
Como sintetiza Vilma Reis: “A luta antirracista é um compromisso com a justiça e a dignidade humana. Cada um de nós tem um papel a desempenhar nessa transformação”.