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Cultura da periferia - 27/10/2025, 07:00 - Da Redação

Com origem na Jamaica, festas paredão ficam entre a cruz e a espada

Eventos do tipo reúnem grande quantidade de pessoas em bairros de Salvador

Apesar dos riscos, festas do  tipo crescem cada vez mais na Bahia
Apesar dos riscos, festas do tipo crescem cada vez mais na Bahia |  Foto: Leitor do Portal Massa!

Seja pela violência ou pela perturbação da ordem pública, nos últimos anos as festas do tipo paredão tomaram conta dos noticiários. Esses eventos, realizados majoritariamente nas periferias das cidades, se tornaram parte da cultura baiana, mesmo infringindo algumas leis, como a da poluição sonora, a perturbação do sossego e até a legislação de trânsito, por conta dos aparelhos acoplados nos veículos. Porém, se engana quem pensa que o paredão é algo recente na nossa história.

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Os paredões são inspirados nas aparelhagens de som da Jamaica, os chamados Sound Systems, que fizeram sucesso nos anos 1940 e 50 entre os moradores de bairros populares de Kingston, capital do país. Esses aparelhos eram montados pela própria população e davam som às festas realizadas no meio da rua. Chegando ao Brasil, esse jeito de festejar na periferia deu origem a diferentes ritmos, como o funk no Rio de Janeiro ou o piseiro e o pagode na Bahia.

Ainda hoje, a população mais pobre de Salvador tem as festas de rua como a principal opção de lazer. O Carnaval ou a Lavagem do Bonfim acontecem em determinadas épocas do ano; já os paredões podem ser realizados em qualquer dia da semana, nos próprios bairros.

Para o sociólogo e cientista social Filipe Baqueiro, o estigma sobre o assunto surge justamente dos locais onde são realizadas esses eventos. “As festas de paredão são criminalizadas, principalmente, por conta de quem faz esse som, quem frequenta esse som, que majoritariamente são pessoas negras, periféricas, que muitas vezes não conseguem acessar outras festas, sendo muito mais caras”.

Paredões fazem parte da cultura baiana
Paredões fazem parte da cultura baiana | Foto: Luan Vítor Evangelista / Portal Massa!

Para a Polícia Militar, a criminalização desses eventos vai além da condição social de quem participa. Ao Portal Massa!, o coronel Ricardo Mattos, comandante do policiamento regional de Salvador, informou que parte das ocorrências atendidas pelos agentes da PM é denunciada pelos próprios moradores dessas comunidades.

Deflagrada em setembro deste ano, a operação contra esse tipo de festa – que realiza apreensões semanais de equipamentos de som em bairros da capital – recebe denúncias anônimas que ajudam os órgãos responsáveis a localizar e coibir esses eventos.

Coronel da Polícia MIlitar Ricardo Matos
Coronel da Polícia MIlitar Ricardo Matos | Foto: Luan Vítor Evangelista / Portal Massa!

“Quando a sociedade vê o serviço sendo executado, passa a confiar mais. Tem aumentado o número de denúncias, o que tem ajudado bastante na atuação. A importância que isso tem foi demonstrada pela quantidade de veículos apreendidos, aparelhagens de som, armas de fogo e drogas. Foram resultados muito satisfatórios”, disse o coronel Mattos.

Segundo o coronel, a polícia, em parceria com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça da Bahia, já planeja a ampliação dessa operação para além da capital, com uma ação integrada de combate e apreensão na Região Metropolitana de Salvador e no interior do estado.

De acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (SEDUR), de janeiro até o dia 12 de outubro de 2025, 633 equipamentos sonoros foram apreendidos pelo órgão em Salvador. As aparelhagens acopladas irregularmente em veículos particulares são as mais confiscadas.

O perigo para quem curte

As periferias de Salvador, geralmente, são dominadas por facções criminosas especializadas no tráfico de drogas. Justamente por isso, muitos dos paredões são financiados por essas organizações, a fim de promover a venda de entorpecentes naquela região. Por isso, mesmo quem frequenta esses eventos apenas pela música ou pela bebida barata acaba exposto a diversos crimes e também à ação da polícia.

O Massa! conversou com moradores dessas localidades, porém, seus nomes verdadeiros foram substituídos por fictícios para preservar suas identidades, por questões de segurança.

Ex-moradora de Itapuã, bairro que lidera a lista de denúncias por perturbação da ordem pública e poluição sonora em Salvador, a jovem Eloah, de 21 anos, ainda frequenta algumas festas do gênero na comunidade e, mesmo sabendo dos riscos, diz que nunca deixou de participar, mas listou os crimes que vê com frequência nesses lugares. “Tráfico de drogas, venda de bebidas adulteradas, porte ilegal de armas, consumo de bebidas por crianças e adolescentes. [Mas] mesmo com toda violência e todos os crimes os quais o paredão ‘apoia’, eu gosto de ir.”

Polícia afirma que paredões são financiados pelo tráfico
Polícia afirma que paredões são financiados pelo tráfico | Foto: Luan Vítor Evangelista / Portal Massa!

De acordo com o sociólogo Filipe Baqueiro, a venda e o uso de substâncias ilícitas não podem se resumir a esses eventos, já que nas festas realizadas em zonas nobres de Salvador também há um alto consumo de drogas. “No Alto do Itaigara têm barzinhos de alto custo, onde também se consome todo tipo de droga, mas a polícia, por exemplo, tem uma outra abordagem num lugar desse, diferente do que tem num bairro periférico, numa festa paredão”, afirmou Baqueiro.

Para Carlos, morador do Bom Juá, não há muitas alternativas de lazer para as pessoas dessas comunidades, que precisam conviver com o tráfico e com a violência para tentar se divertir. Questionado se vale a pena o risco, o jovem explicou: “Pra ser sincero, não vale, mas vou por ser um lugar que pessoas do meu convívio estão”.

Terror para quem não curte

“O barulho é extremo e ensurdecedor. É impossível assistir uma TV, ver vídeo no celular ou até mesmo se comunicar em casa com tanto barulho”. A queixa de Camila, moradora do bairro de São Gonçalo, é a mesma de muitos outros em diferentes locais de Salvador. Para quem não participa dos paredões, as festas são, literalmente, uma dor de cabeça, e não uma forma de lazer.

O medo da denunciar também é algo compartilhado entre as pessoas que são obrigadas a conviver com os transtornos trazidos por esses eventos, justamente por serem promovidos pelos traficantes do bairro onde moram. De acordo com o coronel Mattos, a Polícia Militar disponibiliza o número 181 para que situações recorrentes sejam registradas no sistema do órgão e incluídas em futuras ações, como a operação que combate os paredões todos os finais de semana.

Barulho incomoda quem não participa da festa
Barulho incomoda quem não participa da festa | Foto: Luan Vítor Evangelista / Portal Massa!

Mesmo com o anonimato sendo garantido pela PM, parte da população ainda teme as consequências da denúncia. “Eles (os traficantes) sempre têm um jeito de descobrir. A gente corre risco até de ser mandado embora da própria casa”, afirmou Mariana, moradora do bairro da Engomadeira, que precisa lidar com um paredão perto de casa. Segundo ela, a festa inicia quando chega do trabalho e permanece até o horário que ela acorda para ir pro plantão.

Morando com uma idosa, Daiane, que vive hoje no bairro de Santa Cruz, no Complexo de Amaralina, precisa conviver com o barulho e a violência por conta do paredão que acontece em sua rua, todo fim de semana. Para ela, lidar com os disparos de arma de fogo enquanto cuida de sua mãe é o maior desafio. “Sempre acaba tendo tiro. Já teve briga até por brincadeira entre eles. Um acabou atirando no outro, e os disparos acabaram atingindo uma pessoa que não tinha nada a ver, que estava perto do local. Quando se trata de homens armados, o perigo é grande”.

Volume e horário permitidos

A legislação municipal de Salvador sobre o uso de som estabelece limites rigorosos para a emissão de ruídos. Durante o dia, das 7h às 22h, o volume máximo permitido é de 70 decibéis (dB). Já no período noturno, das 22h às 7h, o limite cai para 60 dB. O descumprimento dessas normas sujeita indivíduos e estabelecimentos a penalidades severas, incluindo apreensão dos equipamentos e multas que variam significativamente, começando em R$ 1.211,73 e podendo chegar a R$ 201.788,90.

Impacto na comunidade

Apesar dos transtornos e da improvável regulamentação dos paredões, por conta das diferentes infrações a diferentes legislações, Filipe Baqueiro defende que o impacto nas comunidades que recebem esses eventos não é somente negativo. De acordo com o cientista social, existe toda uma economia em torno dessas festas, principalmente por quem vende bebidas ou comidas nesses locais.

Mas, além do dinheiro que movimenta, os paredões ainda são a forma mais barata de lazer para as camadas mais pobres da sociedade, que muitas vezes não precisam sequer se deslocar de seus bairros para se divertir.

“É um espaço de lazer, é um espaço de festividade, de pessoas que frequentam aquele lugar, porque gostam, né? Economicamente, isso movimenta o bairro, porque as pessoas consomem no depósito [de bebidas], consomem em outros espaços, enfim. Então, em alguma medida, eles têm esse impacto na comunidade”, afirmou o cientista social.

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