
Ela acorda cedo, cuida da casa, do filho, do marido. E tenta, quando pode, cuidar de si. Mas o espelho só reflete as marcas que a vida deixou. Na Bahia, a violência contra a mulher segue destruindo lares e desafiando as autoridades. E o Portal MASSA! veio responder uma simples pergunta: por que, mesmo com leis e campanhas, ainda é tão difícil romper esse ciclo?
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Violência contra a mulher
Mesmo com a Lei de número 11.340, também conhecida como Lei Maria da Penha, completando quase duas décadas, o número de mulheres agredidas em suas próprias casas segue preocupante na boa terra.
O Portal MASSA! correu atrás dos números mais recentes e segundo a Polícia Civil, entre os dias 1º de janeiro e 11 de maio de 2025, a Bahia registrou 38 feminicídios. No mesmo período do ano passado, foram 41, o que representa uma queda de 7,3%. Mesmo com a redução, o cenário continua alarmante: a cada quatro dias, em média, uma mulher é morta apenas por ser mulher.

Em 2024, o estado contabilizou 111 casos de feminicídio, o que mostra uma média de um caso a cada três dias. E o grau de brutalidade é ainda mais preocupante, já que do total de mortes violentas de mulheres registradas ao longo do ano, duas em cada cinco foram desse crime.
Dados da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) vão além e revelam que 72,1% do feminicídio em 2024 ocorreram entre quatro paredes. Em 82,2% dos casos, o autor foi o companheiro ou ex-companheiro.
O perfil das vítimas também desenha um padrão que se repete ano após ano. São, quase sempre, mulheres negras, na faixa dos 30 aos 49 anos, e que mantinham ou mantiveram algum tipo de vínculo afetivo com o agressor.
O Portal MASSA! procurou o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e o Ministério Público da Bahia (MP-BA) para saber dados sobre o período entre maio de 2024 e maio de 2025, referente ao crime de feminicídio, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Agressão de várias faces
Muitas vezes, o grito não sai porque a 'porrada' não é com a mão. A violência psicológica é ainda mais difícil de identificar e denunciar. E a reportagem fez questão de ouvir as vozes que precisam ser escutadas.
Aos 43 anos, a técnica de enfermagem, que prefere não ser identificada, leva no corpo e na memória as marcas de um relacionamento que começou no modo romance e terminou em violência. Em abril de 2022, ela se mudou para o interior da Bahia para morar com o companheiro que havia conhecido há pouco tempo.
No início, tudo parecia normal, puro 'love', mas a rotina de plantões em Salvador, onde ela trabalhava, começou a despertar um ciúmes exagerado.
Ele passou a implicar com meu trabalho, queria que eu fizesse chamadas de vídeo sempre que dobrava no plantão
"Revistava minhas roupas, meu celular, sentia ciúmes até do cheiro que eu trazia do hospital", acrescenta.
A partir daí começou a violência psicológica, que com o passar do tempo evoluiu para a física. O primeiro episódio rolou em junho daquele ano: "A gente foi para um forró e, quando voltei do banheiro, um rapaz disse algo que nem ouvi. Só por isso, ele me acusou de marcar encontro e começou a me xingar. Quando tentei ir embora, ele me empurrou, me bateu dentro do carro, no rosto, no braço, nas pernas".

Progressivamente, as agressões só ficavam piores. Ela teve celulares e tablet quebrados, sofreu com ofensas, xingamentos e controle ao máximo. "Ele dizia que eu apagava mensagens porque estava escondendo algo. Me chamava de palavras que prefiro nem repetir. Invadiu minhas redes, minhas fotos, queria apagar tudo que envolvia minha vida antes dele", recorda.
O 'ponto final' só veio após um ataque ainda mais violento: "Ele tentou me furar com um palito de fazer unha. Eu consegui me defender e, dessa vez, percebi que não podia mais continuar".
Foi com apoio do projeto Divas de Batom e da amiga Rosângela que ela encontrou suporte jurídico e psicológico. Em dezembro de 2023, conseguiu fugir de volta para Salvador em segredo. Desde então, ela tenta reconstruir a vida, mas com 'sede' de justiça.
Já o rapaz recebeu a primeira intimação, mas sumiu logo em seguida. Ainda conforme a vítima, o processo está parado porque o rapaz “corre do oficial de justiça". Hoje, ela reconhece que só conseguiu entender o processo que vivia graças ao projeto.
No começo, eu não sabia que aquilo era violência. A gente foi criada para achar que é zelo, cuidado. Mas o que parece amor pode ser controle. A educação foi essencial para eu conseguir me defender e escapar
Rede de apoio
Fugir da violência é só o primeiro passo, mas o que vem depois é tão importante quanto: buscar abrigo, apoio psicológico, garantir a segurança dos filhos, lidar com questões legais e financeiras. E para isso, o suporte de casas como a Divas de Batom, que acolhe e ampara vítimas de agressões, é crucial.
Em conversa com o Portal MASSA!, Rosangela Madureira, 'presida' da organização relata que o "grupo realiza escutas e encaminhamentos de mulheres vítimas" de violência doméstica para serviços como a Casa da Mulher Brasileira e a Clínica de Apoio Contra a Violência à Mulher (Clavim), que fornece atendimento jurídico gratuito.
Além disso, realiza ações de que busca fortalecer a autoestima feminina e atividades preventivas voltadas para os homens, na tentativa de erradicar a violência doméstica. Ela ainda reforça que "o cuidado é sempre mais eficaz e mais barato do que reparar os danos".

Sofrimento em conjunto
Cada mulher tem um motivo para ficar. Muitas vezes esse motivo é a família, mas quem está ao redor sempre é afetado por essas situações. De acordo com a psicóloga e neuropsicóloga Joselane Amorim, os efeitos da violência vão muito além da vítima. Pais, irmãos, filhos e outros parentes próximos também são feridos emocionalmente pela dor gerada na própria casa.
"Crianças que presenciam a violência podem desenvolver traumas, ansiedade, culpa, insegurança, fobias e até transtornos como estresse pós-traumático, depressão e transtorno de ansiedade generalizada. Além disso, problemas comportamentais como agressividade, isolamento, distúrbios do sono e baixo desempenho escolar são frequentes", conta a especialista.

O sentimento de impotência também pode tomar conta dos familiares, principalmente aqueles que buscam ajudar e não conseguem romper o ciclo: "É comum que pais, irmãos e outros parentes se sintam culpados por não conseguirem ajudar. O sentimento de impotência pode gerar distúrbios emocionais e sobrecarga. O acompanhamento psicológico é essencial, pois essas pessoas também têm suas vidas atravessadas pela violência".
Joselane também faz um alerta importante: a exposição a esse ambiente pode criar um "ciclo intergeracional da violência". Meninos tendem a reproduzir agressões, enquanto meninas podem crescer normalizando relações abusivas.
"A chave para romper isso é educação, apoio psicológico, ambiente seguro e políticas públicas eficazes que envolvam toda a família", conclui.

Denunciar é só o começo. A mudança também passa por educação, políticas públicas e, principalmente, por uma sociedade que não naturalize a violência. Busque ajuda, ligue 180 e conte com o MASSA! para enfrentar essa luta diária e constante.