Gonzaguinha já dizia: “é a vida, é bonita e é bonita”. E para Rute Fiúza, desde que Davi desapareceu no bairro de São Cristóvão, há oito anos, nove meses, duas semanas e um dia, ela teve que reaprender a viver e, apesar de saber que seu filho foi vítima de uma violência policial, ela viu o amado renascer nas duas netas: “Viver ainda é muito bom e eu estou redescobrindo a vida”.
“Sou avó de duas netinhas e eu vi Davi renascer depois que elas nasceram. Eu sei que Davi vive nelas, vive em mim e vai viver em toda a minha geração. O saudoso Gonzaguinha canta que ‘é a vida e ela é bonita’. Há pessoas ruins, mas há também muita gente boa por aí. Ainda há esperança para a humanidade e eu prefiro crer que o ser humano pode se tornar algo melhor”, completou Rute.
O garoto tinha 16 anos e foi raptado no dia 24 de outubro de 2014, após ser colocado em um carro sem plotagem, durante uma abordagem policial na localidade do Jardim Vila Verde, na Estrada Velha do Aeroporto. Sete de 17 policiais militares foram denunciados pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), em 2018.
A denúncia apresentada à Justiça citava apenas os crimes de sequestro e cárcere privado, uma vez que a investigação da Polícia Civil não forneceu subsídios suficientes para que o MP-BA fizesse uma denúncia contra os policiais por homicídio. Desde 24 de outubro de 2014, já se passaram 3.210 dias e Davi nunca mais foi visto – vivo e nem morto.
A primeira audiência do caso foi marcada para 31 de agosto de 2022, mas terminou cancelada após o Estado não conseguir trazer a principal testemunha, que está sob proteção em outro estado, em tempo hábil. De lá para cá, segundo Rute, só ecoa o silêncio das autoridades.
Foram citados Moacir Amaral Santiago (soldado), Joseval Queirós da Silva (sargento), Genaro Coutinho da Silva (sargento), Tamires dos Santos Sobreira (soldado), Sidnei de Araújo dos Humildes (soldado), George Humberto da Silva Moreira (na época era sargento e hoje é tenente) e Ednei da Silva Simões (soldado). Todos eles, do Pelotão de Emprego Tático Operacional (Peto) e Rondesp.
A suspeita era que a ação fazia parte de uma espécie de ‘batismo’ para que os aspirantes integrassem a corporação e no dia do crime, os policiais participavam de um curso de nivelamento realizado pela 49ª Companhia Independente e pelo Peto, com prática de incursão nas localidades do Cassange, Planeta dos Macacos, Vila Verde, dentre outras. O envolvimento dos sete denunciados foi definido a partir das informações dos mapas dos GPS instalados nas viaturas e dos aparelhos de rádio (HTs) dos seus respectivos superiores.
“Temos um judiciário extremamente lento e, quando se trata do Estado, quando o réu a ser julgado é o próprio Estado, eles agem dessa forma. Então, não houve nada de lá para cá, além da violência de todo o dia. Temos um governo que está mudo, apático de tudo isso que está acontecendo”, desabafou Rute, revelando ainda que soube por terceiros sobre uma suposta audiência prevista para o mês de outubro.
“A Anistia Internacional me contactou recentemente para avisar que vai ter uma outra audiência em 18 de outubro, mas não foi me repassado nada por nenhum órgão. Consultei meu advogado, mas nem ele sabe de nada. Então, se for de acontecer, eu espero que o Estado tenha o mínimo de dignidade na comunicação e me notifique”, disparou.
Rute, que hoje coordena o Movimento Independente Mães de Maio do Nordeste, avalia que o silêncio é uma estratégia do governo para cansar os envolvidos, as partes mais fracas em um processo judicial. “É uma estratégia muito bem feita. Eles se blindam em todas as suas esferas institucionais. Com o cansaço, eles esperam que a gente desista com o tempo, mas eu não! Na última semana, eu estava conversando com uma organização dos EUA e eles disseram que há um interesse nessa prática para que a população esqueça”, diz.
Questionada pela organização sobre os meios que usa para não deixar a história do filho cair no esquecimento e, consequentemente, na impunidade, Rute declarou: “Eu não sei onde teria ido sem o apoio da imprensa. Eu não posso imaginar! E foi a imprensa de Salvador, do Brasil, que me deu essa voz, que me deu espaço e eu agradeço por tudo”.
Embora Rute tenha conseguido reunir forças para seguir em frente e encarar a vida, por ela, por suas outras filhas e por outras pessoas que dependiam dela, ela contou que, passado todo esse tempo, a ferida ainda segue aberta, embora haja momentos nos quais ela pensou ter cicatrizado. “Não é fácil. A ferida está sempre aberta. No nascimento das minhas netas parecia que a ferida estava se fechando, mas não estava e não é porque eu não quisesse, mas é porque isso é a vida. Era para eu ir antes dele, mas ele se foi primeiro, tiraram ele de mim e nem um enterro digno eu consegui fazer”, chorou.
“Minha mãe, minhas filhas e netas. Eu tenho que sobreviver por eles e que todo esse grito que hoje eu dou, que sirva como um barulho para a próxima geração. Que tenham força para lutar em busca de um sistema judiciário mais justo”, completou Rute. “Meu luto eu tive que transformar em luta e eu tenho que seguir em frente por minhas filhas e netas”, emendou. “E vou perseguir a justiça por Davi até o fim da minha vida. Enquanto eu tiver forças, eu lutarei”, declarou.
O caso de Davi é um entre muitos registros de violência policial no Brasil. Segundo um relatório da organização não governamental (ONG) Humans Rights Watch (HRW), divulgado em 12 de janeiro, 6.145 pessoas foram mortas pela polícia no país, em 2021 – 84% delas eram negras.
Em 2006, o Estado executou um dos maiores massacres no Brasil contemporâneo, quando policiais fardados e sem farda assassinaram 493 pessoas, além de desaparecer com outras quatro, em São Paulo. Naquele ano, a cidade paulista viveu dias de medo após o crime organizado liderado pelo PCC orquestrar uma série de ataques contra alvos da segurança pública, como bombeiros, policiais e agentes penitenciários. Em 15 de maio, o Estado retaliou os ataques e executou, em sua maioria, civis sem passagem pela polícia.
Em 2021, 28 pessoas (entre elas um policial) foram mortas na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, durante uma operação contra o tráfico de drogas. Um morador de rua estava entre as vítimas. Na época, a Polícia Civil do Rio alegou que 27 mortos seriam suspeitos, mas não deu detalhes sobre quem eles eram e o que faziam ao serem baleados.
Ativista acusa a polícia
Dado o levantamento da HRW, a ativista e fundadora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, que perdeu o filho, Edson Rogério Silva dos Santos, 29, no massacre de 2006, em São Paulo, enquanto retornava do trabalho para casa, classifica as ações policiais como ‘genocídio’: “O genocídio no Brasil tem cor e é fruto de um racismo estruturalizado. Temos uma polícia extremamente violenta em nosso país, onde é um pobre que mata outro pobre e não há despreparo. Muito pelo contrário, eles são muito bem preparados para matar preto, pobre e periférico”.
“Queremos inclusão e um país igualitário para todos. Entre a esquerda e a direita, eu sou preta, negra e moradora de favela e de periferia. Temos que lutar e não aceitar migalhas. O desaparecimento forçado de Davi Fiúza é um caso gravíssimo, onde um estudante da academia da PM recebe um diploma de conclusão de curso após cometer o crime. Eles (policiais) não entram para ser assassinados, mas são ditados pelo modelo da instituição. E tem covardia da hierarquia que concordou com o desaparecimento do jovem”, completou. Débora também reforçou a pergunta que ainda segue sem resposta há quase nove anos: “Onde está Davi Fiúza? A gente quer saber onde ele está. Precisamos saber e queremos também a punição porque é covardia sequestrar uma criança que estava indo comprar o pão”, reclamou.
“Novas evidências”
Daquele dia, Rute Fiúza lembra apenas do sentimento: “Eu fiquei esperando ele retornar. Eu sentei no sofá e disse para mim mesma ‘ele vai voltar. Foi só um engano e ele deve estar no Dercca’. E eu esperei”, contou. Segundo Débora, a luta de Rute é a luta de todas as ‘mães de maio’. “Rute não está sozinha nessa luta pela justiça. Estamos todos de mãos dadas. O grito das mães de maio do Brasil e da América Latina é o grito da Rute, que exigimos punições severas. Mexeu com uma, mexeu com todas nós”, afirmou.
Às vésperas do sumiço completar nove anos, o advogado de acusação que está junto à família de Davi desde o princípio, Paulo Kleber, diz que a dificuldade da resolução do caso se dá aos recursos empregados para trazer de volta a única testemunha que se encontra em proteção, além dos recursos usados pelas defesas dos policiais. Porém, segundo ele, a situação do caso de Davi pode mudar a qualquer momento.
“Este caso está para ter uma reviravolta porque o Ministério Público e eu achamos novas evidências e por conta disso decidimos mudar a estratégia processual. A petição já foi feita à Justiça e agora esperamos a apreciação do juiz”, revelou. Detalhes não foram apresentados para não atrapalhar o processo. “Estávamos com um otimismo bom até iniciar a fase de instrução, mas hoje voltamos a respirar. Esperamos que seja realizada a justiça e que os policiais paguem o que fizeram”, completou o advogado.
O Tribunal de Justiça confirmou a audiência de instrução e julgamento para 18 de outubro, às 15h, na Vara de Auditoria Militar. “No momento processual encontra-se em curso de prazo para as partes manifestarem quanto ao pedido do Ministério Público, no qual suscita a incompetência da Vara de Auditoria Militar, para julgamento dos autos. Posteriormente, o pedido será analisado pelo Juiz da Vara de Auditoria Militar”, informou o TJBA, por meio de sua assessoria. A reportagem do MASSA! procurou a PM, mas a corporação não se pronunciou sobre o caso até o fechamento desta edição.