
Em combate à criminalidade, que tem atraído jovens para os caminhos errados nas comunidades e periferias de Salvador, um projeto de artes marciais voltado ao judô surgiu com o propósito de resgatar vidas por meio do esporte. Essa é a missão de vida de Carlan dos Santos, sensei que tem formado campeões para a vida há 17 anos.
Com mais de 300 alunos cadastrados, as aulas acontecem no Condomínio Azteca, localizado no bairro Caixa D’água, próximo ao colégio Anísio Teixeira, durante o fim da tarde para o começo da noite. O horário funciona como um ato estratégico para ‘quebrar’ o tráfico e ganhar a garotada para o esporte.
“Quando eu vim pra cá, eu fiz um estudo da mancha criminal da região junto com alguns amigos. A gente percebeu que entre 17h30 e 18h30 era o momento em que os caras (criminosos) estavam na porta das escolas tentando aliciar os meninos, seja pra usar drogas, entrar no tráfico, ou aliciando as meninas também. Aí nasceu o projeto, justamente nesse horário. É 100% gratuito, os meninos não pagam absolutamente nada”, detalhou ao MASSA!.
A luta contra o crime organizado gerou ameaças a Carlan, que precisou abandonar seu antigo dojo para recomeçar em outro local. “A gente chegou a desmontar uma boca de fumo numa comunidade próxima a uma escola onde trabalhávamos. Os caras chegaram a entrar lá pra me pegar, mas dei sorte porque eles foram num dia em que eu não estava. Ficamos sem lugar pra treinar e tivemos que recomeçar”, relatou.

Inspiração para formar campeões
Cria da Cidade Baixa (CBX), a inspiração para ajudar as pessoas começou desde pequeno, ao lado da mãe. Com o tempo, sua vontade de ajudar o próximo só cresceu, até que, em setembro de 2007, fundou o projeto social Jita Kyoei Bahia, conquistando dezenas de jovens com a modalidade esportiva de forma gratuita.
Sempre tive o desejo de combater o aliciamento de menores e o tráfico de drogas. Essa sempre foi minha principal intenção
“A ideia do projeto nunca foi formar campeões ou atletas profissionais, apesar de que muitos acabaram se destacando. A ideia sempre foi formar cidadãos que pudessem intervir positivamente na sociedade no futuro”, afirmou.
Carregando o princípio do ‘Jita Kyoei’, que significa prosperidade e benefícios mútuos, Carlan leva a disciplina e ensinamentos aos seus alunos de diferentes faixas etárias. No entanto, reforça que a prática dos golpes e imobilizações no dojo seja aliada ao lado teórico, incentivando os estudos.
“Cada faixa aqui tem um módulo didático próprio, de acordo com a cor da faixa. Ninguém treina sem o módulo. Cada criança tem que estar lendo um livro, tem que estar bem na escola, com boas notas, bom comportamento. Se o pai quiser colocar a criança hoje e comprar o kimono dela, eu digo: não está autorizado. Tem que merecer usar essa roupa. Tem que cumprir todos os princípios que falei: comportamento, educação, leitura”, pontuou.

“Eu digo pra eles que somos formados por quatro partes: espírito, carne, fé e intelecto. Os quatro têm que andar juntos. Se faltar uma perninha dessas, a gente cai. E judoca não pode cair, tem que se manter em pé”, completou.
Conquistas dentro e fora do tatame
O que começou com um sonho hoje é a realidade da vida de Carlan, que se dedica diariamente a formar campeões, seja dentro ou fora do tatame. O reflexo desse trabalho duro são as conquistas em campeonatos nacionais, regionais e estaduais, mesmo diante das dificuldades financeiras, superadas pela determinação dos atletas.
“Como a gente não tem condição financeira e o judô é um esporte muito caro, desde a vestimenta até a competição e a viagem, esses meninos já passaram por várias academias, mas sempre treinam comigo. Nos torneios apareciam os nomes da academia A ou da academia B. Mesmo assim, a gente já teve aqui campeão brasileiro, campeão regional... Já tivemos vários atletas com resultados expressivos”, destacou o idealizador da iniciativa.

“Têm meninas que foram, por vários anos seguidos, eleitas as melhores atletas do ano. Meu próprio filho já foi o melhor do ano no sub-11. O último que se destacou muito foi medalhista brasileiro nas categorias sub-8, sub-21 e até no sênior. É um talento absurdo, mas parou de treinar por conta do trabalho”, acrescentou o professor.
Entretanto, o sensei frisou que as conquistas mais importantes acontecem fora dos campeonatos. “Agora fora do tatame, que pra mim é onde estão as medalhas que realmente importam, a gente teve conquistas ainda maiores. Tenho meninos que hoje são os únicos universitários da família, com nível superior, graças ao judô. Alunos como a Thais, que conseguiram uma bolsa em outros estados ou até outros países, como Madri e Estados Unidos”.
Uma família unida pelo judô
Apesar da seriedade durante os treinos, com movimentos e ações ofensivas, o companheirismo e a resenha tomam conta do ambiente, transformando o grupo em uma família unida pelo esporte marcial. Quando veste o kimono, Carlan não se torna apenas um sensei, mas também uma inspiração para seus jovens alunos.
Posso dizer, com certeza, que aqui a gente formou uma família. E isso não tem medalha que pague. Hoje em dia eu me sinto realizado
“Tem menino que sai do treino e vai dormir na minha casa — não pode ir pra casa porque teve toque de recolher, tiroteio... E eu sou um cara casado, tenho um filho. Mesmo assim, recebo essas crianças, essas meninas e meninos, sejam menores ou mais velhos”, relatou.

As aulas começam e terminam com um costume chamado ‘Mokuso’, que representa meditação, concentração e pensar em coisas boas. A prática, que ajuda a trazer leveza e harmonia ao tatame, também serviu como terapia para uma das alunas, que enfrentava momentos difíceis. Carlan a acolheu e ajudou a enfrentá-los.
“Tem uma menina que está fazendo terapia comigo porque a mãe está com câncer, um estágio muito avançado. Foi através do Judô que ela conseguiu abrir as portas para o tratamento. Um aluno que trabalha num hospital a ajudou. Hoje o tumor diminuiu bastante, foi um milagre do judô”, concluiu.