
O violão de Gilberto Gil sempre foi mais que um instrumento - é uma extensão de sua alma, um confidente que o acompanhou nos palcos do mundo. Foi com ele nos braços que Gil subiu ao palco da Arena Fonte Nova, em Salvador, no último sábado para iniciar sua última grande viagem pelos palcos do Brasil. A turnê 'Tempo Rei' começou aqui, na terra onde tudo começou, diante de um estádio lotado que aguardava ansioso por um dos mais emocionantes capítulos da história da música brasileira.
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Quando os primeiros acordes de 'Palco' ecoaram – canção composta nos anos 1980, em um período de incerteza sobre sua carreira - parecia que o tempo dobrava sobre si mesmo, trazendo de volta momentos que marcaram gerações. Gil, aos 82 anos, não apenas cantava, mas contava, com sua voz serena, histórias de resistência, amor e brasilidade. Logo em seguida, o artista cantou 'Banda Um' e 'Tempo Rei', esta última uma reflexão sobre a ação implacável, mas transformadora, do tempo - tema que dá nome à turnê e sintetiza o sentimento da noite.
O show começou por volta das 20h35, com quase 30°C na capital baiana. Com mais de 50 mil pessoas na plateia, a recepção foi calorosa, marcada por aplausos e saudações ao rei.
“É uma alegria imensa estar aqui com vocês, reunidos nesta noite especial. Eu e esses queridos músicos trouxemos esse repertório para marcar minha despedida dos grandes espetáculos que venho fazendo há mais de 60 anos. Estarmos juntos aqui é a essência de toda essa trajetória, o verdadeiro sentido de uma vida dedicada à música”, disse Gil durante o show.
O impacto dele na música e na cultura brasileira é inegável. Considerado um patrimônio histórico e cultural, ele não apenas transformou a música popular, mas também se tornou um símbolo da resistência. Para Ana Caroline Barreto de Almeida, servidora pública, o espetáculo não apenas superou as expectativas, mas também trouxe à tona uma reflexão sobre o legado deixado pelo artista.
“É importante ressaltar que o Gil é um patrimônio histórico-cultural, ele representa a nossa ancestralidade. Gil é fundamental para a nossa história. É uma pena porque, quem não viveu essa época, quem não acompanhou nos livros de história ou não ouviu os mais velhos falando, não sabe o que era pegar o radinho de pilha e ouvir as músicas do Gilberto Gil. Isso é algo único, outro nível. O Spotify, infelizmente, nunca vai conseguir reproduzir essa experiência”, declarou.
Sem anistia

Mais do que um evento musical, o show de Gil foi também um manifesto político, e não poderia ser diferente. A história de sua carreira está inevitavelmente entrelaçada com a história do Brasil, e a apresentação trouxe momentos de forte impacto ao relembrar os anos de repressão da ditadura militar.
Em determinado momento do show, um vídeo de Chico Buarque antecedeu a interpretação visceral de 'Cálice'. Quando os gritos de "sem anistia" tomaram conta da plateia, Gil permaneceu em silêncio por um instante, como se absorvesse cada eco, antes de retomar a canção com ainda mais força, enquanto isso, imagens de vítimas da ditadura, como Rubens Paiva e Vladimir Herzog, foram projetadas no telão.
Caetano Veloso e o próprio Gil, presos e exilados nos anos de chumbo, também surgiram na projeção. O estádio inteiro aplaudiu de pé, reconhecendo a importância daquele momento não apenas como um tributo ao passado, mas como um alerta para o presente.
A grandiosidade do espetáculo
O palco montado na Fonte Nova era um espetáculo à parte. Um jogo de luzes e projeções ajudava a conduzir a narrativa da noite, com imagens que passeavam entre o sertão baiano de 'Refazenda', os becos e ladeiras de "Expresso 2222", e as cores vibrantes do tropicalismo, movimento do qual Gil foi um dos fundadores.
Cada detalhe foi pensado para traduzir visualmente a grandeza da trajetória de Gil
A celebração da cultura afro-brasileira também teve seu espaço. Em 'Refavela', Gil rememorou sua viagem a Lagos, na Nigéria, nos anos 1970, que ampliou sua percepção sobre a diáspora africana e influenciou sua obra. No reggae, estilo do qual foi um dos grandes embaixadores no Brasil, ele se emocionou com 'Não Chores Mais', 'Vamos Fugir' e 'Extra'.
Ao longo da apresentação, os arranjos foram cuidadosamente revisitados, sem perder a essência das versões originais. Na banda, o tempo se fez presente na presença dos filhos, netos e outros membros da família, que há anos acompanham e compartilham a trajetória musical do artista.
Gil fez questão de apresentar cada músico, no palco, João Gil, o primeiro neto, se destacou na guitarra, interpretando a canção 'Back in Bahia'; José Gil, o filho caçula, dominou a bateria; e Nara Gil, a filha mais velha, brilhou nos vocais. A direção musical do espetáculo foi conduzida por Bem Gil, outro filho do cantor. O sanfoneiro Mestrinho também teve um papel fundamental, imprimindo seu toque característico, brilhando no acordeon.
O artista ainda tirou um tempinho para dedicar uma canção a sua filha Preta Gil - “Esse show é para mim, para todos nós, mas especialmente para minha querida filha Preta, que está ali sentadinha”, disse Gil, com a voz carregada de afeto, antes de seguir com a apresentação.
Na reta final, a festa tomou conta do estádio. Com os sucessos 'Andar com Fé' e 'Emoriô', o público foi contagiado e se entregou à dança, enquanto Russo Passapusso, vocalista da BaianaSystem, unia sua voz ao coro imenso da plateia. A atual ministra da Cultura, Margareth Menezes, subiu ao palco e, ao lado de Gil, interpretou a emblemática canção 'Toda Menina Baiana', tornando o momento ainda mais memorável.
O encerramento veio com 'Aquele Abraço', música que se tornou um hino de despedida e que, naquela noite, soou como um agradecimento mútuo entre artista e público. Com quase 2h30 de show, Gil deixou o palco sambando, sorrindo e acenando, como um maestro que encerra sua obra-prima. Aos leitores, aquele abraço!
*Sob supervisão de Bianca Carneiro