
O dia de São Cosme e Damião, celebrado em 27 de setembro, já representou fartura e alegria para as crianças. Era comum ver os pivetes correrem pelas ruas com sacolas enormes, orgulhosos de ‘vencer’ a disputa sobre quem conseguia mais doces ou encontrava o caruru 'mil grau' do bairro. Hoje, a cena mudou.
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Em alguns cantos de Salvador, como na Boca da Mata, o Terreiro Unzo Mutalambô Kissibe Viva Deus Neto, onde Zaru Silva, pai de gêmeos, frequenta, mantém a chama acesa. Em tom abafado de saudade, ele recordou, ao MASSA!, os tempos em que a tradição era mais forte.
Toda criança fica feliz quando ganha um doce
Zaru Silva
"Na minha família, essa promessa vem de muito tempo. Quando eu era pequeno, saía de porta em porta e voltava com sacolas cheias. Agora, eu faço questão de trazer meus filhos, Enzo e Ana Luísa, para viver essa alegria", conta.

Da fartura ao esquecimento
Apesar de manter a tradição em casa, Zaru nota que a festa já não tem o mesmo peso na vizinhança. Segundo Daniela, Mãe de Santo do terreiro, a perda dessa tradição está ligada a preconceitos e mudanças sociais.
"Antes, era uma competição para ver quem tinha a maior sacola de doces. A gente via queimados jogados no chão, carurus em várias casas. Hoje, é difícil encontrar até um caruru. Está se perdendo a cada ano", lamenta.

Danrlei Nepomuceno, também do terreiro, acredita que o motivo vai além da falta de tempo ou de grana: "Muitos pais não deixam os filhos irem buscar doces porque associam a tradição ao candomblé, com um olhar preconceituoso e isso afasta as pessoas".
Isso acontece por causa do ódio religioso e do racismo
Danrlei Nepomuceno
Mesmo assim, muitas famílias ainda mantêm viva a entrega dos doces como forma de devoção ou pagamento de promessas. Em algumas ruas da cidade, ainda se vêem crianças animadas, correndo atrás de saquinhos cheios de guloseimas.
"Eu rezo para que essa tradição não acabe. Ela é parte da nossa cultura e traz alegria para as crianças. Espero que meus filhos possam viver isso por muitos anos", diz Zaru.
Cada cabeça, cada um
O caruru dos sete meninos, prato feito com quiabo, azeite de dendê e outros ingredientes típicos da culinária baiana, sempre foi parte fundamental da festa. Na tradição dos terreiros, ele é oferecido aos erês, entidades infantis.
"Aqui, a gente ainda faz a babulha, que é colocar todas as comidas numa grande bacia, com as sete crianças sentadas em volta, cantando e celebrando. Mas isso também tem se perdido com o tempo", detalha Mãe Daniela.

Apesar de estar fortemente ligado à cultura afro-brasileira, o caruru também foi incorporado por famílias católicas como forma de agradecimento por bênçãos recebidas.
Na Paróquia São Cosme e São Damião, na Liberdade, em Salvador, o padre Carlos Augusto Cruz reforça que, para os católicos, o foco da festa é a fé e o legado dos santos.
"São Cosme e São Damião foram médicos que curavam sem cobrar, sempre em nome de Cristo. Eles foram perseguidos e martirizados por causa da fé. Para nós, o principal é celebrar esse testemunho de caridade e serviço", explica.

Sobre a entrega de doces, o padre diz que a paróquia organiza tudo com cuidado para evitar tumulto: "A gente recebe os doces e distribui depois, para crianças da catequese, comunidades e escolas. No dia da festa, o movimento é muito grande e não dá para entregar na porta da igreja".
Ele também destaca que não há condenação ao caruru ou aos doces. "Não está errado. É uma forma de expressão da fé. Só não faz parte da nossa celebração dentro da missa, porque o foco é a Eucaristia", reforça.

Patrimônio cultural
Desde setembro de 2024, o Caruru de São Cosme e Damião é reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado da Bahia. Ao MASSA!, Marcelo Lemos, diretor geral do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac), unidade vinculada à Secretaria de Cultura do Estado (SecultBA), destacou o peso desse reconhecimento.
Representa a valorização de uma tradição secular profundamente enraizada em nossa identidade
Marcelo Lemos, diretor geral do Ipac
"Trata-se da preservação de saberes, práticas e memórias transmitidas de geração em geração. Ao ser registrado como patrimônio, asseguramos não apenas a originalidade desse banquete, mas também a riqueza de seu diálogo com o sincretismo religioso - uma das marcas mais expressivas da cultura baiana. Garantimos, ainda, que elementos simbólicos, como a mesa dos sete meninos, a forma de servir o prato e a comunhão da partilha com a comunidade, permaneçam vivos e continuem a fortalecer os laços de pertencimento e coletividade", afirma.

Sincretismo e preconceito
O sincretismo religioso, que mistura elementos do catolicismo e das religiões de matriz africana, é parte essencial da história da festa. Durante a escravidão, escravizados escondiam seus cultos associando orixás e inquices a santos católicos. Essa fusão garantiu a sobrevivência dessas tradições.
Só que hoje em dia essa mistura ainda gera debate. "O sincretismo ajudou a gente a resistir, mas também trouxe problemas. Muitas pessoas demonizaram nossa religião. Se me veem com um pano na cabeça ou com roupas do terreiro, tem gente que se afasta. É preconceito puro", desabafa Mãe Daniela.

O padre Carlos, por outro lado, garantiu que a Igreja prega respeito entre as religiões. "Cada um celebra de acordo com a sua fé. Não vejo motivo para repulsa ou conflito. O importante é não invadir o espaço do outro e manter o respeito. Não vejo como a Igreja tenha gerado esse medo ou repulsa dos católicos", afirma.
De um lado ou de outro, ou até mesmo em nenhum deles, viver a tradição é sinônimo de resistência daquilo que faz parte de todos os cantos da Bahia.
*Sob a supervisão do editor Pedro Moraes