Presente nas lendas e mitologias de diversos países ao redor do mundo, as sereias e os tritões se tornaram ainda mais marcantes na mente das pessoas quando passaram a ser representadas nas histórias do cinema e da TV. Desde produções como “A Sereia”, de Mélies (1904), “Ele e a Sereia” (1948), “Splash – Uma Sereia em Minha Vida” (1984), a obras mais recentes como o live-action de “A Pequena Sereia” (2023), eles seguem fazendo sucesso no imaginário popular.
No Brasil, estes seres do mar também estiveram na tela, a exemplo da animação musical “Mônica e a Sereia do Rio” (1987), e com muita sensualidade e sedução em “O Canto das Sereias” (1990), exibida pela Rede Manchete. Fora das mídias, a lenda da Iara, criada pelo povo tupi-guarani, conta a história de uma poderosa índia que, antes de virar sereia, vivia em uma tribo junto com a sua família. E claro, também não há como esquecer da Rainha do Mar e padroeira dos pescadores, Iemanjá, que foi celebrada na sexta-feira, 2 de fevereiro, e é representada como uma sereia em algumas mídias.
Navegando pelo oceano urbano da capital baiana, o Portal A TARDE, conversou com uma sereia e um tritão para conhecer um movimento criado por pessoas que são apaixonadas pelas tais entidades marinhas: o sereismo.
Alexandre Filho é médico veterinário e usa o nome artístico de Tritão Ale. Embaixador do grupo “Sereia Guardiã”, intitulado como “a maior comunidade de sereianos do Brasil”, ele diz que o sereismo vai muito é muito mais do que apenas vestir uma cauda de peixe, sendo um movimento que vem ganhando força ao redor do mundo, unindo o lúdico dos contos de fada a diversas técnicas de apneia e natação.
"Ser uma sereia requer muito treino e dedicação, uma vez que as caudas podem pesar de 3 a até mais de 40 kg. Além disso, prender a respiração debaixo d’água por longos períodos não é uma tarefa fácil, muito menos segura, se não for feita por uma pessoa que possui o devido treinamento”, explica.
Ainda segundo Ale, o sereismo pode ter várias funções, seja no entretenimento, em apresentações em aquários ou festas, e até mesmo, servindo como uma ferramenta para a educação ambiental e conservação dos oceanos. Além disso, essas sereias e tritões do mundo real também estão presentes em ensaios fotográficos e na confecção de acessórios, somando mais alternativas de crescimento financeiro.
"Existem diversas lojas que fabricam colares e caudas de sereias de látex e silicone, por exemplo, pelo mundo todo, até aqui no Brasil. As sereias e tritões estão ocupando espaço e mostrando a todos que a figura da sereia não é algo voltado apenas para as crianças e que pode, sim, ser aclamada e adorada por adultos também, independente de idade, cor, gênero, sexualidade ou peso. O sereismo não tem barreiras nem limites".
Mergulho consciente
As figuras das sereias e dos tritões na vida real também podem ser utilizadas na abordagem de temas importantes como preservação e conservação do meio ambiente, descarte de lixo, pesca predatória e outros assuntos de consciência socioambiental, afirma o Tritão Ale.
"Muita gente vê a sereia apenas como uma coisa de criança, como um personagem de filme que só serve para ser bonita, no entanto, a sereia pode sim e deve ser utilizada para a pessoa se tocar e falar ‘poxa, se a sereia está incomodada, imagine os peixes, as tartarugas, os golfinhos e tantos outros seres que vivem no mar?’”, diz.
Na Bahia, muitas sereias já participam de ações com essa abordagem em escolas ou em projetos de conservação como o Tamar e Baleia Jubarte. Uma delas é a personal chef Vitória Mota, que adotou o nome de Sereia Vitória quando resolveu entrar para o sereismo.
Fascinada pelas sereias desde a infância, sob a influência da animação da Disney “A pequena sereia" (1989), ela começou a pesquisar na internet por caudas de sereia, e acabou descobrindo um universo de várias sereias e tritões modernos, que também compartilhavam os mesmos gostos.
"Foi em 2020 que eu consegui comprar minha primeira cauda e realizar esse desejo. E isso não foi só um hobby, acabou virando uma coisa muito grande, tanto que você consegue trabalhar seu emocional".
Vitória conta que entre as experiências mais marcantes, esteve uma ação voluntária de limpeza no Porto da Barra. "Você consegue se divertir, você consegue alegrar as pessoas que estão ao redor, porque as pessoas acabam se encantando, quer entrar nesse universo junto com você".
Desafios
Mas se transformar em uma sereia ou tritão está longe de ser uma tarefa fácil. O ofício requer habilidades técnicas, além de esforço. O que parece ser uma atividade simples e fácil, requer, na verdade, muito treinamento e força de vontade.
"O sereismo é uma forma de expressão artística, que requer muito treino, para aprender a prender a respiração, fazer as cambalhotas, os beijos, os sorrisos. Ficar com o olho aberto debaixo d'água requer muito treino. Muita gente chega e pergunta: ‘como você consegue ficar com o olho aberto no mar?’ O treino da apneia é importantíssimo, que nada mais é do que você sentir confortável prendendo a respiração. Então é um esporte, é uma atividade de muito risco", enfatiza o tritão Ale.
Mas para além das dificuldades físicas, apesar de muita gente se encantar e se divertir com as figuras icônicas dos oceanos, as sereias e tritões ainda enfrentam críticas e preconceitos, que vão desde a escolha da prática, a questões estéticas e de gêneros. Vitória afirma o quanto as críticas de pessoas que veem o movimento apenas como algo de criança a deixam desanimada.
"Uma vez mesmo eu estava num clube e era dia das crianças e um pai chegou pra mim e perguntou o porquê de eu estar com uma fantasia de sereia se eu não era criança. Que era ridículo. Então, isso no início afeta bastante, mas depois você acaba entendendo que nem todas as pessoas têm o mesmo pensamento, tem pessoas que vão achar bonito, tem gente que vai achar uma coisa imatura".
Alexandre também enfrenta desafios, principalmente, por segundo ele, o sereismo ser mais aceito pela sociedade quando se é praticado por uma mulher, justamente pelo nome mais famoso ser o feminino desses seres do mar, a sereia.
"A gente sabe que a gente vive numa sociedade super preconceituosa, homofóbica, machista, racista. Mas acaba que o fato de ser um homem fazendo esse movimento, muitas vezes não é bem aceito, é julgado, é xingado. Coisas que as sereias já sofrem, principalmente falando dessa questão de ser coisa de criança".
Praticantes do sereismo encontram resistência pela sociedade| Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
Ainda de acordo com Ale, as críticas também atingem a aparência física dos praticantes. Ele contou que já chegou a ser hostilizado enquanto praticava o sereismo no bairro da Barra, um dos cartões postais de Salvador.
"As pessoas ficavam: ‘olha a sereia ali, o viadinho vestido de sereia’. É uma coisa que a gente ouve. Então, meus amigos sempre mergulham em dupla, pelo menos com mais uma pessoa, é o certo a ser feito, porque se acontecer alguma emergência, você pode ter um auxílio. Nunca nade sozinho de sereia, pelo amor de Deus", pede
Outra coisa que falam: ‘ah, você é muito gorda para ser uma sereia’, por exemplo. Sendo que o sereismo, ele não tem esse limite. A gente sempre diz que é uma comunidade muito aberta, muito receptiva, então a gente não tem essa distinção de cor, gênero, porte físico, nada. A gente só gosta de unir pessoas que tenham essa paixão pelo mar, que sintam esse chamado, e que se sintam confortáveis na água. Tem muita sereia por aí que nem gosta de nadar, só de vestir a cauda, de fazer esse papel de chamar atenção para a preservação do meio ambiente", completa.
Conexão sagrada
Foi por ter uma forte ligação com água desde a infância que Alexandre se aproximou de Iemanjá. Tal relação o levou a escolher não só a sua profissão, como também, a prática do sereismo.
“Iemanjá sempre se fez muito presente na minha vida desde a infância. Eu sempre tive uma ligação muito forte com a água, principalmente com o mar, então, isso reverbera na minha vida até hoje, tanto que até para a minha profissão, eu escolhi ser médico veterinário para cuidar dos animais marinhos, e com isso eu consegui associar o sereismo com essa minha paixão em um combo perfeito”.
Além do sereismo, Ale que atualmente passou a frequentar a Umbanda, disse ter se encontrado com Iemanjá, religiosamente. Na sexta-feira, 2, ele deixou homenagens para a orixá.
Já a sereia Vitória percebe entre ela e Iemanjá paixões e gostos em comum. No dia da Rainha do Mar ela trabalhou e não pode homenageá-la como sereia, mas que se pudesse, teria usado “uma cauda verde grandona para ficar um pouco na praia”.
"Iemanjá vive em água salgada e eu também adoro água. O mar, piscina, se pudesse eu ficava o dia inteiro. Desde pequena, eu sou apaixonada por mar. E a segunda coisa são presentes. Assim como ela adora receber presentes, eu também às vezes, acabo garantindo os meus. Quando eu vou no mar, acabo achando pulseira, brinco, colar. Às vezes eu levo conchinhas, pedrinhas muito bonitinhas que eu acho na água, porque, cada coisa que eu levo para casa é uma forma de eu me lembrar daquele momento, daquele dia que eu fui nadar, porque cada um é especial para mim”.
“Todo mundo do sereismo sempre fala que a gente tem uma sereia dentro de si, que o momento que a gente usa a cauda pela primeira vez é como se ela viesse pela superfície e você completa essa sua jornada, não é à toa que a cauda é a peça do sereismo que é mais almejada [...] O amor é uma força que move tudo e o mar não deixa de ser uma força da natureza que faz essa limpeza, a gente sempre diz que o mar cura, a água desacelera a gente, então até para auxiliar em ansiedade e depressão, a água é muito boa, então o sereismo é só uma ferramenta a mais para você se sentir completo e leve com a nossa existência aqui na terra”, finaliza Ale.