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Caiu na rede - 02/12/2023, 06:20 - Amanda Souza

Porto das Sardinhas recebe toda Salvador em busca do peixe

No Subúrbio, sardinhas vendidas a apenas R$ 1 chamam a atenção da clientela e garantem o sustento de muita gente de formas diferentes

A depender da fartura da pesca na madrugada, o quilo varia entre R$ 1 e R$ 3
A depender da fartura da pesca na madrugada, o quilo varia entre R$ 1 e R$ 3 |  Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

A sardinha é um alimento conhecido pelos seus inúmeros benefícios nutricionais, sendo fonte de ômega 3 e de vitaminas do complexo B. O que muitos não sabem, no entanto, é que pelas bandas do Subúrbio Ferroviário de Salvador, a sardinha é fonte de economia para quem compra e de sustento para quem vende.

No lugar conhecido como Porto das Sardinhas, que fica no final de linha de São João do Cabrito, todos os dias, antes do sol raiar, pescadores, tratadores e vendedores de sardinha se preparam para esperar a clientela que vem toda a cidade em busca do peixe a um custo baixo. A depender da fartura da pesca na madrugada, o quilo varia entre R$ 1 e R$ 3.

Longe das características de um comércio convencional, tudo acontece à beira d’água. Os pescadores chegam com a mercadoria, os clientes levam os baldes para encher e, de quebra, ainda saem com o peixe pronto para cozinhar graças aos serviços das tratadoras (grupo formado majoritariamente por mulheres), que, além de limpar a sardinha, ainda abrem em filé. Serviço completo!

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Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

Maria da Penha é uma dessas mulheres que vive de tratar sardinha ali no porto. Aos 59 anos, ela já trabalha com isso há 10 e é de lá que garante o pão de cada dia. O mais curioso, no entanto, é a maneira como ela partiu para essa forma de negócio. Eu vim comprar peixe e vi que tratando dava uma pontinha, acabei ficando por aqui mesmo”, conta. “Eu vendia fruta e verdura no carro de mão, mas aqui é melhor porque tem sardinha todo dia e eu só preciso de uma tesoura para trabalhar”.

O trabalho é inteiramente manual e os anos ajudaram com a prática. Em segundos Maria da Penha deixa o peixe limpinho, pronto para o consumidor final ou até mesmo para quem compra para revenda pela cidade. Além do dinheiro, claro, também tem a realização de quem trabalha com algo simples, mas que gosta muito. “Eu chego 4h30 e fico aqui enquanto tiver sardinha. Amo fazer isso, amo de paixão tratar peixe. Não tem lugar na Bahia com peixe fresco e barato melhor que aqui”, garantiu Maria.

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Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

Tratar o peixe é só mais uma das formas de fazer dinheiro no Porto das Sardinhas. A principal, claro, é a pesca, um trabalho árduo, cansativo, mas que também é a garantia do sustento de muitas famílias - do Porto das Sardinhas saem 13 barcos de terça a domingo carregando esses homens. Antônio Carlos Reis é um deles; há 45 anos ele tem uma rotina que muitos desconhecem como de fato funciona.

“A gente sai de noite para pescar, né? Não tem hora pra ir nem pra voltar, quem manda é Deus. A gente sai no barco por volta de 19h, 20h. Chegamos, cercamos e pegamos o peixe. Se achar, vamos embora, mas se não der bom vamos ficar até de manhã se for preciso para trazer”, conta Antônio, que tem a pescaria como primeira profissão. “Nunca nem tirei uma carteira de trabalho”, confessa.

Apesar do comércio ser aquecido ali pelo Porto, as sardinhas também ganham o mundo nas mãos dos conhecidos por “atravessadores”, aqueles que compram para revender pela cidade. Há 30 anos Marivaldo Bacelar deixou de vender doces nos ônibus para investir no trabalho como atravessador. “Quando comecei aqui o quilo da sardinha custava R$ 0,10! Eu venho de terça a domingo uma vez no dia, pego minha mercadoria e vou fazer o corre nos bairros”, conta. “E vende legal, o pessoal de Salvador gosta mesmo de uma sardinha”, brinca o vendedor.

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Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

Esse tipo de vendedor aparece aos montes ali pelo porto. Eles levam de todos os jeitos: o peixe inteiro, ou tratado, aberto em filé e até mesmo já embalado. Diante dessa demanda de limpeza e empacotamento, teve alguém que também enxergou mais uma oportunidade de negócio no Porto das Sardinhas. Jorge Luís Pugliesi montou uma barraquinha por lá para vender alguns materiais que são do uso do dia a dia de quem trabalha por ali.

“Eu vendo aqui o sal, que eles usam bastante, os sacos plásticos, que é o que mais vende porque eles usam para empacotar os peixes, e tenho também a escamadeira de peixe, um item que é um trabalho artesanal, eu mesmo faço”, conta Jorge. “Foi o meio que eu encontrei para viver dignamente de acordo com o que o local onde eu tô pede”, completou o comerciante.

Essas pessoas - e muitas outras - dividem o espaço em busca do próprio sustento. Entre barcos e garças, sardinhas, agulhinhas, arraias e outros peixes, eles criaram a própria comunidade, estabeleceram um comércio e formam, hoje, uma dos atrativos mais belos do subúrbio, não apenas pelo preço da sardinha, mas pelo que representa para o povo que vive naquele lugar.

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Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

Mais que sardinhas, o Porto tem muitas histórias

É possível perceber que o legado do Porto das Sardinhas passa de geração para geração. Dos pescadores mais velhos às moças mais jovens que estão aprendendo a lidar com o peixe, o ofício formou o caráter e deu perspectiva a muitos daqueles que vivem ali.

A história é viva e não se afasta do porto. Um exemplo disso é seu Vivaldo Gonçalves, um ex-pescador que, aos 98 anos, não deixa de ir ao local que por muito tempo foi o seu trabalho; às vezes ele vai para comprar um pouco, pensando até em vender, mas, em geral, o passeio é só para ver como anda o pessoal que está na ativa hoje dia - muitos, inclusive, aprenderam um pouco com o próprio Vivaldo.

“Eu nasci aqui. Esses meninos aí trabalhando é quase tudo filho meu, eu ensinei a pescar quando eles nem sabiam pegar no remo”, contou. Agora já tem um bocado de tempo que eu não pesco, não porque eu não queria, mas fiquei com medo de sair tão tarde da noite, estava perigoso, e aí fui parando. Mas eu gostava demais, eu conheço bem a pescaria, conheço esse mar todo, sei pra onde a maré corre e não corre porque estava aqui desde que eu tinha sete anos, aprendi foi com a vida”.

O legado que seu Vivaldo deixou, continua sendo seguido por muitos ali. É o caso de Rafael Santana, que trabalha no porto com todo tipo de peixe e conheceu o ofício quando ainda era menino. Fruto de uma família de pescadores, nascido e criado ali mesmo no Subúrbio, não sabe o que é viver longe do mar; e aí não deu outra: garante o sustento também com a ajuda do peixe.

“Eu gosto de trabalhar aqui porque me fortalece demais, pra mim é melhor que estar empregado em qualquer outro lugar por aí. Depende do mês, da parte do ano, mas dá pra ganhar meu dinheiro tranquilo aqui”, garante Rafael. “Fora que é um lugar bom de trabalhar, é todo mundo unido e a gente mesmo faz a nossa logística pra que dê pra cada um ganhar o seu sustento”.

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Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

A força está nas mãos das mulheres

O trabalho braçal sempre foi algo muito associado ao universo masculino, mas nunca foi preciso ir muito longe para fazer essa teoria cair por terra. Na Porto das Sardinhas, onde todo mundo trabalha junto e misturado, não dá para passar despercebido o número de mãos femininas trabalhando incessantemente na limpeza do peixe.

Às vezes sozinhas, ou em grupos, em dupla… o que for possível para adiantar o trabalho é feito. Erenildes Ramos e Sueli Santos por vezes se revezam no trabalho. Enquanto uma limpa, tirando as escamas e vísceras, a outras vai abrindo a sardinha em filés. Dali elas seguem para as vendas, cada uma à sua maneira.

Erenildes deixa o porto com um destino certo. “Eu moro num condomínio e vendo por lá mesmo. Mas claro que aproveito o caminho até a minha casa e já saio mercando, vou anunciando e vendendo no caminho mesmo”, explica. “No condomínio eu não posso gritar para vender, mas já tenho os clientes certos. Não sobra nada!”, diz.

Arrepiada, Erenildes conta que o trem que cortava o subúrbio faz muita falta na hora dessa venda. “Ah, quando esse trem passava aqui era bom demais. Chego a me arrepiar de lembrar da quantidade de pessoas que vinham aqui e também que a gente conseguia ir para outros lugares usando o trem”, lembra.

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Foto: Uendel Galter/Ag. A TARDE

Foi justamente pela falta do trem que Sueli encontrou uma maneira diferente de vender o seu peixe. “Era bem difícil pegar ônibus com o peixe, então eu dependia de alguém para me levar nos lugares porque também não queria ir andando. Então fui pra internet, né?”, diz. “Hoje eu vendo pelo Facebook e pelo WhatsApp, as pessoas vão buscar na minha casa. Ficou muito melhor”.

Erenildes e Sueli se juntam à estatística que não é novidade no Brasil: são mães solo. Para elas, é um orgulho ter criado seus filhos com a vida no Porto das Sardinhas. “Nunca tive vergonha que as pessoas soubessem que eu trabalho aqui. Foi da sardinha, do peixe, que criei a minha filha e tenho muito orgulho disso”, afirma Sueli.

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