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Sem paz - 25/05/2023, 13:38 - Anderson Orrico - Atualizado em 25/05/2023, 14:19

Oposição a resort na ilha, pescador foge de Boipeba após ameaças

Homem é contrário a construção de complexo hoteleiro Ponta dos Castelhamos no local

Raimundo Esmeraldino em reunião na Ilha de Boipeba
Raimundo Esmeraldino em reunião na Ilha de Boipeba |  Foto: Tunísia Cores

Um pescador, identificado como Raimundo Esmeraldino, teve que fugir às pressas da ilha de Boipeba, no sul da Bahia, local onde mora há 60 anos, porque está sofrendo ameaças de morte. O motivo é a oposição que vem fazendo ao complexo hoteleiro Ponta dos Castelhamos, que tem como sócio José Roberto Marinho, dono da Rede Globo. As informações são do site The Intercept.

Siri, como é mais conhecido na comunidade tradicional Cova da Onça, é uma das principais lideranças populares em Boipeba e tem se posicionado abertamente contrário ao empreendimento. Em razão disso, começou a receber ameaças por mensagens de texto, áudios e vídeos que circulam em grupos de WhatsApp dos moradores da ilha.

“Nós temos que esperar esse Siri aqui. Esse vagabundo. Temos que pegar esse descarado aqui, em cima da ponte, rapaz. Você é um canalha, um cachorro. Em Cova da Onça aqui, esse homem não tem valor nenhum. Meu cachorro rottweiler, Ave Maria, tem mais valor que esse homem mil vezes. Esse é um safado, descarado. Quando ele chegar aqui, [vou] jogar ele da ponte de baixo, porque ele não quer o bem da comunidade não. Esse canalha”, diz uma das gravações que o site teve acesso.

O negócio a que Siri se opõe é a sociedade Mangaba Cultivo de Coco LTDA, formada por empresários poderosos. Entre eles, estão José Roberto Marinho, dono da Rede Globo, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, além de outros quatro sócios cheios de dinheiro: Clóvis Macedo, Marcelo Stallone, Antonio Carlos de Freitas Valle e Arthur Baer Bahia.

A construção luxuosa vai ser levantada em uma Área de Proteção Ambiental e deve ocupar 1.651 hectares de extensão – o que corresponde a quase 20% de todo território da ilha. O Intercept mostrou que, embora o governo da Bahia tenha concedido uma licença para início das obras, o terreno é uma área pública federal e os sócios da Mangaba não detêm a posse definitiva desta enorme propriedade.

Ameaças

Em uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia para tratar da questão, um dos procuradores do Ministério Público Federal à frente do caso, Ramiro Rockenbach, afirmou que a compra desse terreno deveria seguir procedimentos técnicos regidos pela administração pública, como a concorrência, e que “fora disso, é fraude de grilagem”.

Desde o dia 7 de abril, a obra está suspensa, após a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), acatar pedido do MPF. O prazo inicial foi de 90 dias.

“Muita gente ficou irritada com essa decisão de embargar [a obra], pois foi cooptada e defende o empreendimento com unhas e dentes. Eles não entendem os prejuízos que isso vai trazer para nossa comunidade e que, uma vez feito, será irreversível”, diz Siri, que deixou a ilha de barco exatamente no dia do embargo.

As ameaças contra Siri se intensificaram após uma visita coordenada entre as Defensorias Públicas do Estado da Bahia e da União, que foram até as comunidades tradicionais e quilombolas para ouvir os moradores sobre os possíveis impactos do empreendimento. O pescador participou da atividade levando os defensores até as áreas potencialmente afetadas. Depois, foi aberto um espaço para que várias pessoas pudessem falar sobre o projetoEssa ação ocorreu no dia 4 de abril.

Na reunião teve de tudo: discussão, vaias, tentativa de boicote e uma providencial mudança de cenário – inicialmente a reunião deveria ocorrer em Cova da Onça, comunidade vizinha à Ponta dos Castelhanos e mais afetada pelo empreendimento. Os defensores, no entanto, percebendo os ânimos exaltados, transferiram o encontro para a sede de Boipeba. Lá, Raimundo foi atacado pelos apoiadores do projeto e teve o direito de resposta concedido para se defender e também se opor ao complexo hoteleiro – uma luta que vem travando desde 2008, quando os sócios da Mangaba iniciaram as tratativas para compra do terreno.

'Siri' guiando os Defensores em visita à ilha
'Siri' guiando os Defensores em visita à ilha | Foto: Tunísia Cores

“Ele tem que se ligar que a maioria não aguenta nem mais ouvir a voz dele. A voz dele aqui hoje é um nojo. A voz dele aqui hoje em São Sebastião ou Cova da Onça é um nojo. Esse é um canalhocrata. Tem que empurrar ele da ponte de baixo”, ouve-se em outro áudio do aplicativo de mensagens.

“Siri, aceite, meu preto, a comunidade hoje… Você bate nessa tecla há 12 anos. Hoje [na Ponta dos] Castelhanos todo mundo tem seus poços lá, Siri. Graças a Deus todos os barraqueiros têm seus poços. Deixe de ser descarado, rapaz. Mentiroso! Aceite que 100% nem quer mais ouvir sua voz em Cova de Onça. Tá arriscado você chegar em cima da ponte e voltar em cima da ponte. Você procurou uma briga grande contra a comunidade. A comunidade hoje é toda contra você”, diz outro trecho, gravado pelo mesmo autor.

Com propaganda na mídia baiana, o negócio tem sido vendido como um “vetor de desenvolvimento sustentável” e fala em “capacitação de mão de obra” e outras condicionantes para atender as comunidades locais, como campo de futebol, instalação de equipamento esportivo, plano gestão de resíduos sólidos, gestão urbana e melhorias no saneamento básico, além de uma estação de tratamento de resíduos.

Essas promessas tem ganhado força entre os moradores. Em um dos áudios, um homem alerta para “ficar ligado em Siri, por ele tá querendo destruir a comunidade”. E segue dizendo que “tem muito menino novo estudando para arrumar emprego. A gente tem nossos filhos, a gente vai ver nossos filhos fazendo o pior trabalho em Cova de Onça… Eu não quero meu filho tirando caranguejo ou armando ratoeira. Isso é vida de ninguém”.

A empresa Mangaba disse que desconhece as ameaças ao pescador e afirma ainda que “repudia todo e qualquer tipo de violência, e sempre pautou sua atuação na legalidade e no diálogo com a comunidade”.

Além dos áudios, dois vídeos também foram gravados, um com sete e outro com 18 segundos de duração. Nas imagens, que também circularam em grupos de WhatsApp, é possível ver carnes sendo assadas em uma churrasqueira e um pequeno siri, o animal, também na grelha em meio às brasas. “Hoje é dia de churrasco e seu sirigueijo está aqui na churrasqueira”, diz uma mulher, sem mostrar o rosto, no primeiro vídeo.

No segundo, um homem, sem também revelar a identidade, aponta a faca para o siri e bate no pescado repetidas vezes. “Aqui, óh. Depois de um dia de carne, vamos botar o sirigueijo para assar na churrasqueira. Vamos comer siri assado na brasa. Quebrar as pernas do siri”, diz. Ao fundo, um outro grita: “Siri, porra. Vamos comer siri”.

Mesmo sem mostrar os rostoso nos vídeos, Si disse que sabe quem são os responsáveis pelas ameaças e também os autores das mensagens de voz.

“Eu sei quem são. Mas essas pessoas também sabem tudo sobre minha vida, onde moro, meus hábitos e o nome da minha esposa. Saí de Boipeba por isso. Mas, por outro lado, não posso ficar muito tempo longe porque vivo da pesca. Não tenho outro meio de sustento e preciso trabalhar para sobreviver”, disse.

Siri preferiu não registrar um boletim de ocorrência na polícia sobre as ameaças para não se expor mais e que “não daria a solução necessária”. Sua alternativa foi deixar a ilha o mais rápido possível.

Para Gabriel César, defensor regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União, “os órgãos de segurança pública, historicamente, não atuam com o mesmo vigor quando as vítimas são pessoas hipervulneráveis, em decorrência do manifesto racismo estrutural que acomete as instituições brasileiras. Esse cenário de descrédito nas instituições pode ter desestimulado Raimundo Siri a registrar formalmente as ameaças e, em vez disso, fazer a opção por prover pessoalmente a sua proteção”.

Solano Mirando, integrante do Conselho Pastoral dos Pescadores, contou que o grupo tem se organizado para tentar bancar a permanência do pescador enquanto ele se mantém distante de Boipeba.

“Alguns companheiros de luta tem emprestado moradia, levantando dinheiro tanto para ele quanto para a esposa. A gente não quer que eles voltem agora porque o risco existe. Não vamos esperar acontecer o pior para tomar alguma providência”, afirmou Miranda.

Defensoria acompanha o caso

A Defensoria Pública da União, em nota, afirmou que apenas informalmente tomou conhecimento das ameaças, uma vez que ele não as registrou oficialmente nos órgãos competentes. E também que repudia os “episódios de coação e ameaças sofridas por pessoas que se colocam contra o avanço de empreendimentos incompatíveis com o modo de vida de comunidades tradicionais”.

Já Defensoria Pública do Estado disse que está acompanhando atentamente a situação no sul da Bahia e existe um grupo de trabalho “visando frear as violações de direitos e que está ciente das ameaças, que ocorrem há algum tempo”. A DPE disse ainda que “órgãos de segurança pública já estão a par do que ocorre com as lideranças e moradores de Cova da Onça, Boipeba entre outras comunidades”.

O órgão disse ainda que vai entrar em contato com o líder Raimundo para “recepcionar as novas denúncias e tomar providências, com encaminhamentos aos responsáveis pela proteção e segurança da população local”.

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