
O barulho de uma sirene repercute na avenida Luís Viana, em Salvador. É mais um motociclista que não chegará ao destino. A cena, repetida diariamente nas ruas da Bahia, tornou-se símbolo de um fenômeno que ultrapassa as fronteiras do estado e revela um colapso nacional.
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De cada dez pacientes internados em leitos de trauma por acidentes de trânsito, oito são motociclistas. Os números do Hospital Ortopédico da Bahia (HOEB) impressionam: entre janeiro e agosto de 2025, os casos de acidentes com motos representaram entre 78% e 87% dos atendimentos mensais. “Hoje, os traumas mais complexos vêm das motocicletas. São pacientes que exigem múltiplas cirurgias, longas permanências em UTI e podem cancelar cirurgias eletivas inteiras”, explica o médico e diretor da unidade, Dr. Roger Monteiro.
O custo dessa epidemia é igualmente grave. “Uma diária de UTI no SUS varia entre R$ 2 mil e R$ 3 mil, podendo chegar a R$ 5 mil nos casos mais críticos. Já o tratamento ortopédico completo de um motociclista pode custar até R$ 225 mil, dependendo da complexidade”, relata Monteiro. O valor médio por paciente gira em torno de R$ 27.781, o que sobrecarrega os cofres públicos e o sistema hospitalar.
De acordo com dados do SUS, as internações por acidentes de motocicleta cresceram 117% em uma década, saltando de 5.949 em 2014 para 12.888 em 2024. Só no ano passado, 48.797 internações relacionadas ao trânsito foram registradas na Bahia, somando um gasto de R$ 233,3 milhões. A capital também vive um aumento acelerado da frota: de 160 mil motos em 2020 para mais de 216 mil em 2025, um crescimento de quase 35% em apenas cinco anos.
A vida recomeça em outro ritmo
Entre os números, estão histórias que revelam o peso dessa estatística. Suzana Daniela Maciel dos Santos, 48 anos, é uma das sobreviventes. Um sinistro de moto a deixou paraplégica após uma lesão na coluna vertebral. “Fiquei 47 dias em coma na UTI. Depois, fui pra enfermaria e precisei aprender tudo de novo: tomar banho, me vestir, me virar sozinha”, conta.
Hoje, Suzana mora sozinha e sobrevive com o Benefício de Prestação Continuada (BPC). “O valor ajuda, mas é complicado. Tenho gastos com fraldas, medicações, muitas o governo não cobre, e cuidados pra evitar escaras. É uma rotina de luta. As pessoas acham que o impacto é só o custo médico, mas ninguém imagina o que vem depois”, desabafa.
Ela faz parte do grupo que a Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT) chama de “epidemia de traumas”: dois terços dos pacientes de trauma ortopédico são motociclistas, em sua maioria jovens entre 20 e 29 anos. Um terço das vítimas sofre sequelas permanentes, 82% convivem com dor crônica e quase 36% têm algum tipo de amputação. É o retrato de uma epidemia silenciosa que dilacera corpos e orçamentos públicos.
“Eu sobrevivi, mas ele não”: o ponto de vista de quem estava na garupa
Nem sempre o trauma é apenas físico. Ana Cristina Santana sobreviveu a um acidente que tirou a vida do condutor da moto em que ela estava. “Foi tudo muito rápido. Um carro veio na nossa direção e bateu de frente. Quando acordei, o Samu já tava me socorrendo”, lembra.
Ela teve o fêmur e o quadril fraturados, passou por cirurgias e ficou com parafusos e platina nas pernas. “Hoje manco um pouco e às vezes sinto dor, mas o pior foi o medo. Peguei moto uma vez depois do acidente, morrendo de pavor, e nunca mais quis. Senti muito pela perda dele, chorei muito, mas graças a Deus consegui me recuperar emocionalmente.”
A gravidade desses sinistros está na ausência de proteção, em um carro, a estrutura metálica protege. Na moto, não há nada. Mesmo em baixa velocidade, uma queda pode causar fraturas, traumatismo ou até atropelamento. É uma vulnerabilidade total.
Os impactos não param no hospital. Um levantamento do Ministério da Previdência estima que, entre 2003 e 2012, o INSS gastou mais de R$ 25 bilhões com auxílios-doença, aposentadorias por invalidez e pensões por morte de vítimas de sinistros de trânsito, em sua maioria motociclistas. Jovens em idade produtiva, que deixam de contribuir e passam a depender do Estado.
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Trânsito (IBDTrans), Danilo Oliveira Costa, o Brasil precisa abandonar a ideia de que se trata de “acidentes”. “Chamamos de sinistros de trânsito porque toda morte é evitável. O que existe é falta de política pública eficaz e de comportamento seguro”, afirma.
Ele defende três frentes prioritárias: fiscalização, educação e infraestrutura. “É preciso garantir que os condutores sejam habilitados, usar capacete e viseira fechada, respeitar os limites de velocidade e investir em transporte público. A precariedade da mobilidade urbana faz com que as pessoas vejam a moto como a única alternativa.”
O especialista chama atenção para uma lacuna grave: “Na Bahia, só 19% dos municípios têm o trânsito municipalizado. Isso significa que, na maioria das cidades, não há fiscalização, nem política local de educação para o trânsito. Sem isso, continuaremos a ver hospitais lotados e famílias destruídas.”
Segundo Danilo, o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (PENATRANS), em vigor até 2030, busca reduzir em 50% as vítimas de sinistros, alinhado às metas da ONU. “Mas o governo precisa parar de gastar com o que já aconteceu e começar a investir na prevenção. Educação nas escolas, punição rápida a infratores e transporte público de qualidade são a base de uma mudança real.”
Epidemia silenciosa
A soma das histórias e dos números mostra que os sinistros com motocicletas não são apenas um problema de trânsito, mas uma questão de saúde pública e de justiça social.
Na linha de frente, médicos e socorristas seguem operando múltiplas fraturas e tentando devolver mobilidade a jovens que nunca mais andarão como antes. Nos bastidores, o SUS absorve custos milionários, enquanto o país paga um preço invisível, o de vidas ceifadas e sonhos interrompidos.
“Os motociclistas precisam entender sua vulnerabilidade e respeitar as regras de trânsito”, alerta Danilo Costa. “O maior deve respeitar o menor, e o menor deve preservar a própria vida.”
