Dor, saudade e revolta são os sentimentos dos familiares das vítimas e sobreviventes do naufrágio da Cavalo Marinho I. Após seis anos do acidente na Baía de Todos-os-Santos, que deixou 19 mortos e 59 feridos, eles continuam aguardando uma resposta da justiça para respirarem mais aliviados e mudanças no sistema de travessia com a esperança de não precisarem reviver o terror daquele 24 de agosto de 2017.
Era uma manhã de quinta-feira tranquila como todas as outras, com idas e vindas no Terminal Marítimo de Mar Grande, quando às 6h44, apenas 14 minutos depois de ter zarpado, a Cavalo Marinho I foi jogada contra as pedras por uma onda e acabou com sonhos e famílias que perderam seus entes queridos. A embarcação naufragou com com 116 passageiros e 4 tripulantes que estavam a caminho de Salvador.
O motorista Danilo Reis Julião, atualmente com 33 anos, lembra que foi levar a esposa, de 39 anos, o filho, de 2 anos e 3 meses, e a sogra para pegar a lancha com destino à capital baiana para fazer um exame médico e foi a última despedida. Os três ficaram entre os mortos no acidente.
Foi só desespero, correndo tudo, procurando. Não tenho nem palavras para descrever o sentimento daquele momento
Danilo Reis Julião, motorista
“Deixei eles lá e quando cheguei em Bom Despacho para trabalhar, fiquei sabendo da situação. Até então, a informação que eu tive era que tinha acontecido um acidente com outra lancha. Quando cheguei em Mar Grande, tive a triste notícia que foi justamente a deles que havia afundado. Foi só desespero, correndo tudo, procurando. Não tenho nem palavras para descrever o sentimento daquele momento”, recordou Danilo emocionado.
Para ele, além da saudade, o maior sentimento é a revolta com a falta de respostas pelos órgãos competentes que investigam o caso. Danilo é um dos que estão sendo representados pela Defensoria Pública da Bahia (DPE-BA) no processo contra os responsáveis pelas embarcações e esperam por justiça há seis anos.
“Parece até que foram animais que estavam dentro da lancha. E se fossem animais, já era para ter resolvido algo, porque se a pessoa cria é porque tem um sentimento, imagine seres humanos, uma família? Estamos esperando um posicionamento, mas toda vez é a mesma história, caminha pra cá e pra lá, mas nada se resolve. Meu interesse maior não é receber valores, eu quero que os verdadeiros culpados paguem pelo que eles causaram, porque isso aí não foi algo por acaso, já era premeditado e não quero que aconteça de novo porque eu sei a dor que sinto”, afirma.
De acordo com o motorista, as lanchas não tiveram nenhuma melhoria, correndo o risco de acontecer outra tragédia e fazer outras famílias, inclusive a dele, passar por toda a dor novamente.
“Continuam transitando em tempo de acontecer outro acidente e pessoas perderem seus entes queridos. Eu também corro esse risco porque infelizmente eu ainda tenho familiares que fazem essa travessia e não quero passar por tudo isso de novo. Vai esperar acontecer para resolver? Eu acho que é isso que eles estão esperando. Eles mudaram o nome para fugir das indenizações e responsabilidade, mas nada foi feito. Até o último dia da minha vida eu vou lutar por isso”.
Diante do medo e dos traumas causados pelo naufrágio, Danilo não viaja mais de lancha e revela que que por ele ninguém mais faria a travessia. Ele também cobra das autoridades um fechamento do caso.
Minha vida toda mudou completamente. Eu perdi o meu chão. Era meu único filho. A única pergunta hoje para eles [responsáveis pelo caso] é e se fosse a família deles, será que já tinha resolvido?
Danilo Reis Julião, motorista
Sobrevivente
Quem também estava na lancha e não esquece os momentos de terror que viveu naquele dia foi Josiene Ramos de Souza, de 50 anos. A moradora da ilha estava indo comprar material de trabalho quando tudo aconteceu.
“Aquele dia foi terrível. Eu estava indo comprar mercadoria. Na época eu estava trabalhando com bijuteria, aí eu estava indo buscar material quando aconteceu. Foi muito rápido, porque eu só ouvi duas vozes: uma disse ai meu Deus, e a outra gritou vai virar. Eu já estava lá no fundo. Pela graça de Deus, quando eu subi do fundo do mar, alguém me pegou e me botou no bote”, contou ela.
Apesar do susto que passou, Josiene afirma que não ficou com traumas graves, mas que evita pegar o barco no inverno e deixou até de trabalhar com vendas de bijuteria para não precisar ficar indo e vindo toda hora.
“Até hoje tem um saculejo na minha cabeça, parece que tem água dentro. Já fui no médico e ele disse que não tem nada, mas de vez em quando fica saculejando. Nos primeiros dias eu fiquei muita dor no corpo por causa da batida das ondas. Depois fiquei com o meu pescoço duro, tive que usar aqueles coletes. Eu só faço a travessia no verão e vou tranquila, mas no inverno não vou não. Tanto que eu deixei de trabalhar com bijuteria e agora estou só com o cosmético, porque a caixa chega na minha casa”
A sobrevivente revela que o processo dela está com a Defensoria Pública, mas que até o momento não sabe a quantas andam, porque é inverno e não atravessa o mar para acompanhar.
“Agora que os processos mudaram para Salvador, eu nem fui lá ainda, porque é inverno e eu não vou agora. Eu só vou lá de novembro em diante pra saber como é que tá. No papel que me deram diz que o valor da indenização é de R$ 100 mil por pessoa, mas eu não sei afirmar, deve ser. Até agora não saiu nada, valor nenhum”, contou Josiene.
Indenizações
Na época do acidente, a Defensoria Pública entrou com 46 ações indenizatórias contra a CL Transporte Marítimos, dona da embarcação Cavalo Marinho I. Dessas, 41 ficaram no juizado de Itaparica e as demais em Salvador. Com o passar do tempo, alguns familiares e sobreviventes contrataram advogados próprios e 36 processos continuaram a cargo da DPE.
Grande parte das ações foi concluída em 2019 e enviadas para a Justiça, faltando apenas que o juiz determine o valor das indenizações, mas de acordo com a DPE, a CL transporte, pediu que o caso fosse julgado pela União.
Em nota, a Defensoria afirmou que os recursos interpostos pela empresa ré tiveram seu mérito julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, mas ainda não houve trânsito em julgado, ou seja, não são decisões definitivas as que reconheceram a existência de interesse da União, o que modificaria a competência dos feitos para a Justiça Federal.
A DPE recorreu e a questão encontra-se pendente de apreciação no Superior Tribunal de Justiça. Porém, antes mesmo da decisão final, o juízo de 1º grau, titular da Vara Cível de Itaparica, com base nessa decisão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), reconheceu de ofício sua incompetência sob alegação de interesse da União no feito e remeteu todos os processos para a Justiça Federal em abril.
Ainda em nota, a DPE disse que a Justiça Federal alegou que a questão é facultativa, ou seja, cabia à Defensoria escolher se incluiria ou não a União nos processos e que os casos deveriam retornar para a Justiça Estadual. Porém, como existe decisão do TJBA alegando interesse da União e existe decisão da Justiça Federal dizendo que isso é facultativo, a Defensoria recorreu para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) resolver a questão. Então, agora é preciso que o STJ julgue a questão: se há interesse ou não da União e, consequentemente, de quem é a competência: se da Justiça Estadual ou Federal.
A reportagem entrou em contato com a responsável pela embarcação Cavalo Marinho I, mas até o fechamento da matéria ainda não havia obtido resposta.
Uma das familiares que recorreram para um advogado particular foi Nívia Sueli de Medeiros Ramos, que perdeu a filha, de 27 anos, e o neto, de dois anos. Ela conta de do dia do acidente pra cá, a luta foi grande, teve que enfrentar problemas psicológicos na família e a revolta pela falta de resposta durante esses seis anos.
“É tudo muito triste, muito terrível e ver a impunidade é o pior. Minha filha do meio, que também ia viajar naquele dia, mas desistiu, até hoje tem problemas. Estamos nessa luta para vermos a justiça sendo feita. Por aqui nada mudou. Não tem lanchas novas, não tem reparos. A única coisa que mudou foi o terminal, que passou por uma reforma. A gente espera que isso não se repita, mas continua tudo muito precário. Precisamos que as autoridades tenham um olhar melhor pra isso”, desabafou.
De acordo com Nívia, ela entrou com uma ação independente na justiça, mas que o advogado informou que isso pode levar anos para ser resolvido.
“Teve uma indenização proposta em 2020 com valor irrisório, mas creio que se alguém aceitou foi algum sobrevivente, porque os familiares dos que se foram não aceitaram. Não tem dinheiro que pague uma vida. O advogado me disse que realmente é uma coisa demorada, que é processo para dez anos, pode sair antes ou não, mas que é bem demorado porque envolve muitos órgãos”, disse.
Condenados
Em 2020, o Tribunal Marítimo condenou, por negligência, dois responsáveis diretos pela tragédia.
Lívio Garcia Galvão Junior, dono da empresa responsável pela embarcação foi multado em R$ 10.860, a ser corrigido pelo setor de execução do Tribunal Marítimo. O outro penalizado foi Henrique José Caribé Ribeiro, que foi impedido de exercer a sua função de responsável técnico em todas as Capitanias dos Portos do Brasil pelo período de cinco anos.
No mesmo processo, a Marinha cancelou o registro de armador da empresa CL Transportes, que parou de operar nos terminais Náutico, em Salvador, e de Vera Cruz, em Mar Grande. Já comandante da lancha, Osvaldo Coelho Barreto, foi indiciado por imprudência, mas não foi considerado culpado, durante o julgamento.
Fiscalização da Capitania dos Portos
A Marinha do Brasil, por meio da Capitania dos portos, é a responsável pela fiscalização das embarcações que fazem a travessia Mar Grande-Salvador e na época do acidente, apesar de afirmar que a lancha estava regular, encontrou diversas negligências, atribuídas ao proprietário da empresa e ao engenheiro. A principal delas foi a colocação de 400 kg de lastros, que são pesos usados para ajudar na capacidade de manobras, no fundo da Cavalo Marinho I.
Os objetos são feitos de concreto e estavam soltos abaixo da sala de comando, quando deslizaram dentro da lancha, contribuindo "negativamente para a capacidade de recuperação dinâmica da embarcação".
Também foi identificado a embarcação passou por mudanças consideradas irregulares, que acabaram com a inserção desses lastros. Depois da colocação desse peso, um novo estudo de estabilização deveria ter sido feito.
Em contato com o Portal Massa!, a Capitania dos Portos afirmou que com base no que foi apurado sobre o acidente com a lancha Cavalo Marinho I ocorrido em 24 de agosto de 2017, a CPBA intensificou a fiscalização quanto à divulgação das orientações de segurança aos passageiros que utilizam o serviço, bem como as instruções para a utilização de coletes salva-vidas e procedimentos em caso de sinistros.
Mudanças
A CPBA também emitiu uma portaria, em 20 de setembro de 2017, exigindo que as sanefas (lona para proteção de chuva e vento) das embarcações empregadas no transporte de passageiros possuam mecanismos de destravamento rápido, proibindo o uso de correntes, cabos e metais oxidáveis no fechamento dessas sanefas. Esta mesma portaria determinou que, a partir do dia 20 de março de 2018, as embarcações que operam no interior da Baía de Todos-os-Santos (BTS), transportando mais de 20 passageiros, possuam Sistema Automático de Identificação (AIS), que permite à Marinha o monitoramento e a obtenção em tempo real de informações de embarcações equipadas com o sistema, inclusive no caso de um pedido de socorro.
A Diretoria de Portos e Costas, em 13 de março de 2018, por meio da Portaria nº 80/DPC, alterou as Normas da Autoridade Marítima da Autoridade Marítima para Embarcações Empregadas na Navegação Interior – NORMAM-02/DPC, com estabelecimento de requisitos de compartimentagens e dotações de dispositivos, equipamentos e materiais para embarcações, visando minimizar os riscos de acidentes, e prover a salvaguarda da vida humana, tais como largura mínima e dispositivo de destravamento de sanefas, dotação de transceptor para AIS e condições do lastro fixo.
Ainda de acordo com a nota, a Capitania, em 22 de maio de 2018, ativou o Centro de Coordenação da CPBA, com o propósito de realizar o monitoramento das condições meteorológicas dos micro-climas no interior da BTS, por meio de alguns sistemas da Marinha do Brasil e extra-Marinha, relacionados com a segurança e controle do tráfego marítimo, cujo objetivo principal é coordenar as ações de prevenção de acidentes e operações de busca e salvamento.
O Comando do 2º Distrito Naval (Com2ºDN), monitora, permanentemente, as condições meteoceanográficas na sua área de jurisdição, compreendida entre os estados de Bahia e Sergipe. Com base nos parâmetros que são observados, emite, com 24 horas de antecedência, uma previsão das condições meteorológicas no mar.
A Marinha finaliza a nota ressaltando que toda e qualquer embarcação a ser construída ou alterada deve ter o acompanhamento de um engenheiro naval responsável. Após ser concluída a sua construção, são feitos diversos testes, dentre eles, teste de estabilidade, e só após ser finalizado todo o processo é emitido um laudo do respectivo engenheiro atestando que a embarcação atende os requisitos mínimos de segurança para navegação.