
São gêmeos batizados com o nome dos santos, caruru em agradecimento por algum milagre e tem quem só procura uma 'boia'. Mas a fé continua viva. Neste sábado (27), é celebrado o dia de São Cosme e São Damião. No interior ou na capital, a data dos irmãos gêmeos é quase que sinônimo de comida boa, festança e muitas histórias em família.
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Assim como muitas espalhadas pelo território baiano, a tradição do caruru na família de Vânia Moraes segue vivíssima. A história iniciou com a sua mãe, quando teve um sonho revelador, que fez nascer a tradição ainda quando morava em Cachoeira, no Recôncavo baiano.
Um sonho fez nascer a tradição do caruru
Foi dormir sem filhos e acordou sabendo que teria duas meninas. Essa foi a história da mãe de Vânia, já citada, e Ana Elizabeth, irmãs gêmeas. "Um dia, ela [mãe das gêmeas] sonhou que tinha duas crianças no mato. Ela foi chegando, ouvindo o choro e se aproximando até que abriu um clarão e eram duas crianças. Ao vê-las, ela ficou muito assustada, guardou esse sonho e foi ao médico porque começou a sentir uns sintomas diferentes", iniciou Vânia.
O médico ainda sem vê-la, disse: 'Epa lá vem aí duas meninas'
Contou Vânia a história da sua mãe
"Logo sentiu um arrepio, mas, para ela, não estava grávida. No exame foi confirmado que, de fato, ela estava grávida. Ele disse com convicção: 'Você terá duas meninas'", continuou.
Apesar de toda confirmação, a história não para por aí. A futura mãe, até então, saiu com uma pulga atrás da orelha e desabafou para o marido e futuro pai das gêmeas. "Ela saiu descrente. Meu pai era espírita e frequentava umas reuniões de espiritismo, no centro de Cachoeira. Aconteceu um evento, e foi dito que possivelmente ela teria a dádiva de abrir espaço para reencarnação de duas crianças. Então, ali, ela teve certeza que, de fato, teria gêmeos".

Caruru em forma de agradecimento
Com o tempo passando, nasceu as gêmeas Vânia e Beth. Com elas, também veio a tradição de fazer o caruru, que é mantida até os dias atuais. "Ela começou, em agradecimento, fazer esse caruru de sete meninos. Isso foi de Cachoeira para Feira de Santana, de Feira para Salvador. Em todos esses anos ela fazia o caruru no nosso aniversário e não em setembro, até que mais ou menos aos 24 anos ela disse o seguinte para gente: 'Olha, me sinto preenchida nessa promessa realizada. Então, de agora em diante vocês tomem essa responsabilidade'", compartilhou Vânia.
Para além da comida e da fé, a tradição também se tornou um exercício de gerações, já que a família vive a terceira geração e já conta com o apoio da neta, Hana Moraes, no preparo.
"Hoje eu passo isso para minha filha Hana que faz esse caruru comigo. A gente vai na feira, compra os ingredientes e eu tenho uma intuição de que quando você participa de todo o processo, é como se você também tivesse naquela promessa, naquela fé", contou.

Caruru de sete meninos
O babalorixá Luciano Gomes, do terreiro de candomblé ketu Ilê Omo Omi Ejá Asé Barú, no Rio Vermelho, explicou como funciona a devoção do caruru de sete meninos, que foi realizado no último domingo (21), na Casa onde lidera.

Expressão conhecida por muita gente, a celebração do caruru no mês de setembro foi popularizada. Antes mesmo do período chegar, já é comum ouvir: "Onde vai rolar o caruru de sete meninos?". Ao Massa!, o babalorixá também respondeu o mistério por trás do banquete que leva caruru, feijão fradinho, pipoca, abará, acarajé, banana frita, rapadura, cana-de-açúcar e arroz branco.
"Caruru é uma junção da comida de todos os santos, por isso que é um pouquinho de cada coisa, onde cada comida daqui tem a representatividade de um orixá. Aí vira um banquete, um pouquinho de cada se torna um banquete", compartilhou.

O pai de santo Luciano fez questão de negar a associação do caruru com o mal, reforçando que "aquilo que alimenta não faz o mal". Quanto à tradição do caruru de sete meninos, ele fez questão de explicar todo funcionamento.
"Chama-se a mesa fria de Erê. Quando a Casa é regida por Santo homem, são cinco homens e duas meninas. Quando a casa Casa é regida por Santa mulher, são cinco meninas e dois homens. Ali a gente faz a satisfação aos santos crianças. Naquela mesa faz com que aquelas crianças tenham prosperidade em algo na vida. Elas são escolhidas naquele momento. Todas que sentam ali, tem um propósito, são as escolhidas", concluiu.

Quem são, de fato, São Cosme e Damião?
O professor de História da Bahia, Murilo Mello, detalhou a ascensão dos gêmeos que se tornaram santos.
"Cosme e Damião são gêmeos, nascem na Arábia, cidade de Egéia. A família é nobre, a mãe passa o catolicismo para eles. Daí então, os gêmeos começam a praticar cura, a cuidar de enfermos e davam doces para alegrar os pacientes. Daí vem a tradição", detalhou.
Ainda uma religião pequena e sem tanto poderio geopolítico, quem professava o cristianismo era perseguido na região, o que aconteceu com Cosme e Damião. "O imperador Diocleciano decapitou eles. Daí se tornam mártires. Aumenta o poder deles. Essa mortes trágicas aumentam ainda mais a imagem e a importância das pessoas para a história".
Até chegar em solo brasileiro, levou algumas centenas de anos. Com a morte no Século III, a história do santos chega ao Brasil apenas no Século XVI, segundo professor Murilo.
"Em 1536, no início do Brasil, vai ter a construção da igreja para São Cosme e Damião. O capitão do Natário de Pernambuco, Duarte Coelho, que talvez tenha sido o mais rico de todos, vai pedir para que seja levantada essa igreja, que existe até hoje. A devoção para São Cosme e Damião, no Brasil, começa a partir, sobretudo, de Pernambuco. São atribuídos para eles alguns milagres", explicou.
"A gente vai ter febre amarela que vai assolar Recife, Olinda, Itamaracá, Goiana. Segundo os relatos, a fé e a crença em São Cosme e São Damião que vai fazer com que essa febre amarela pare de assolar essa região", completou.
O padre Carlos Augusto Cruz, pároco da Paróquia Santos Cosme e Damião, destacou a história de caridade e pregação do evangelho em um período de perseguição. Além disso, também compartilhou a vida em devoção aos gêmeos.
"Para nós, cristãos católicos, a devoção aos santos Cosme e Damião é uma prática religiosa e popular que se manifesta por meio de orações, cânticos e intercessões (ladainhas), principalmente no mês de setembro, por conta da festa que recorda o martírio dos irmãos. Acredita-se na intercessão deles junto a Deus pelos doentes e pelos mais pobres, já que eles nunca aceitaram pagamento pelos atendimentos médicos e curas que realizavam", disse.

O padre também tirou a dúvida de qual data, de fato, é comemorado o Dia de São Cosme e Damião. "Em nossa Paróquia, o dia de maior celebração é o dia 27, com uma programação especial de sete missas, louvor a Deus, procissão, e queima de fogos", elencou.
Sincretismo
Padroeiros dos médicos e farmacêuticos, com o tempo os santos foram associados à proteção dos pequenos. Unidos à fé vinda de África, os gêmeos católicos passaram a ser associados ao orixá Ibeji, por ser uma criança que coexiste dentro de si, com dupla personalidade. Além disso, os gêmeos também são relacionados aos erês, espíritos de crianças que levam a mensagem dos orixás para os humanos.
"O caruru dos erês é uma satisfação que se dá às crianças. Quando a gente dá o caruru, a gente semeia esses caminhos. É uma criança que traz consigo o saber dos antigos, pois ele também é um grande mensageiro. Exu é o mensageiro do céu com a terra", detalhou o babalorixá Luciano.
Erê é o mensageiro dos orixás para com os humanos.
Babalorixá Luciano Gomes

"Então, ele traz consigo essa renovação de ciclo de energia, informando a gente que é muito bom ser criança. A gente traz consigo também essa representatividade de unir, quando a gente faz o caruru a gente divide essa essa comida em forma de prosperidade", continuou.
Apesar da importância histórica como manutenção de fé dos escravizados, figuras religiosas de matriz africana preferem que os orixás não sejam mais associados aos santos católicos e vice-versa.
"Apesar do Candomblé passar a ser uma religião quase ecumênica, existe respeito aos costumes. Candomblé é uma religião de hierarquia, onde os meus antigos pontuavam o Cosme e Damião, a gente tem essa representatividade também, de respeitar, mas sabendo que Cosme e Damião é Cosme e Damião, Ibeji é Ibeji", disse.
Se eu vou na igreja de Cosme e Damião, eu digo amém. Se eu estou no Candomblé, eu digo Bejiróó.
Babalorixá Luciano Gomes
O líder da Paróquia dos santos gêmeos também compreende a ligação dos festejos entre as religiões e contou até os efeitos causados nas missas. "O cristãos católicos adotaram a nova data litúrgica para o dia 26 de setembro, mas com o forte apego e principalmente na cultura e devoção popular, o dia da celebração ficou o dia 26 no catolicismo e 27 de setembro nas religiões de matriz africana", explicou.
*Sob supervisão do editor Jacson Brasil