De maneiras diferentes, muitas pessoas procuram por uma chance de virar a página. Algumas delas precisam deixar para trás uma história que não querem mais contar, outras estão em busca de escrever novos capítulos. Há ainda quem esteja unindo esses dois propósitos para seguir em frente num local em que planejar um futuro é um pouco da esperança que resta.
Essa é a realidade de alguns dos alunos do Colégio Estadual Dr. Berlindo Mamede de Oliveira. Poderia ser só mais uma história que nasce na educação pública, não fosse por um detalhe: os estudantes dos quais falamos aqui não são da escola regular, mas do Anexo Colônia Penal de Simões Filho.
Homens privados de liberdade, condenados pela justiça e cumprindo pena no regime semiaberto; esse é o perfil das 211 pessoas que estão presas na colônia, que fica na Região Metropolitana de Salvador. Na rotina do cárcere, que não é das mais dinâmicas, uma atividade tem feito a diferença na vida desses homens: ir à escola.
“Nós temos dois pátios e cada um tem uma sala de aula”, explica Tarcísio Santiago, diretor da unidade prisional. “São quatro professores atuando ativamente com esses homens; trabalhamos com o ensino fundamental e eles têm acesso às disciplinas que qualquer aluno da rede estadual tem”, completa Tarcísio.
A frequência não é obrigatória. As aulas começam às 8h, uma hora depois da abertura das celas e da oferta do café da manhã. Vai quem quer, mas Tarcísio garante que quem quer sempre vai. “Isso já é uma vitória. Muitos deles não tiveram acesso à educação antes e estão tendo no momento em que estão cumprindo a pena”, ressalta.
A proposta educativa dentro da colônia, no entanto, vai além do currículo comum. Há um esforço dos professores e servidores envolvidos nessa atividade para que a escola tenha um papel transformador na vida dos apenados. Isso acontece, por exemplo, quando a professora de matemática se preocupa em ensiná-los a compreender o próprio atestado de pena, quanto tempo já cumpriu ou quanto falta para uma progressão de regime.
Shirley Costa é essa professora. Para ela, a experiência de trabalhar com esse público é um reforço do seu papel no mundo. “É um lugar diferente, mas é um lugar que tem estudantes. Qualquer lugar que tem estudante é um lugar que lhe inspira. Eu sou educadora e o meu objetivo principal é realmente transformar a vida desses estudantes por meio da educação”, atesta.
Se de um lado os números são um atrativo para esses homens que buscam conhecer mais da própria realidade enquanto apenados, do outro também tem os livros, que os ensinam a virar a página na forma literal da expressão. Um projeto desenvolvido pela equipe de educação promove, a cada 15 dias, uma roda de leitura. Os estudantes debatem sobre os livros que têm lido e fazem um relatório (que posteriormente será enviado a um juiz para avaliar a possibilidade de remição da pena).
De nome “Livros Para Voar”, o projeto estimula a leitura e a partilha de conhecimento entre os apenados de maneira a trazer para eles novas perspectivas de vida. Valuza Saraiva, coordenadora pedagógica da unidade prisional, tem visto um resultado positivo.“É muito melhor ler num espaço como esse do que não ler”, assume. “Eu destaco como resultado estudantes que não sabem ler e de repente chegam aqui para uma roda de leitura para ouvir os depoimentos”, completa a coordenadora.
Eles ficam ansiosos para o dia do debate. Aos 57 anos, E.C., condenado a 16 anos, 11 meses e 10 dias, é um dos estudantes que não perde uma roda de leitura. Ele enxerga aquele momento como uma oportunidade de conhecer mais sobre si mesmo.
“É fato que a leitura muda a vida das pessoas, como tem mudado a minha e a de muitos aqui. Fico ansioso por esse debate porque é quando eu posso esclarecer aquilo que eu tenho aprendido aqui”, conta E.C. “Eu descobri que tenho um potencial que estava escondido dentro de mim. Quero levar isso lá para fora, quero deixar tudo o que não vale a pena, estudar, crescer e ser para meus filhos um exemplo de vida, um espelho. Até então eu tinha vivido um mundo limitado, e já vi que o estudo e conhecimento não têm limite, eu posso ir além do que tenho ido”, reconhece.
O sentimento de E.C. é compartilhado entre os colegas que participam das aulas e da roda com regularidade. A sensação descrita é de que, naquele momento, eles são apenas estudantes e nada além disso.. “Eu vou à escola porque eu acredito que a gente pode ter um futuro, fazer uma faculdade, trabalhar”, conta E.L., um apenado curitibano que encontrou na leitura uma chance de se sentir melhor dentro do cárcere.
“Eu estive perto da loucura dentro do exílio. Eu perdi minha mulher, casa, carro, e a presença da minha família. A minha saúde psicológica foi voltando com os livros. [...] Vou viver o presente hoje, só quero ter uma oportunidade, estar perto da minha família e conseguir um bom emprego”, assume.
Entre eles, uma percepção é unanimidade: viver a rotina de um estudante nesse contexto é um caminho para esquecer a vida que levaram e o que fizeram para estarem ali. Mais do que isso, eles acreditam que estudando vão conseguir aliviar a tensão constante e o estado deprimente de alguém que vive encarcerado.
Remição de pena é apenas o “acender do fósforo”
Além de tudo o que atividades educacionais podem proporcionar ao ser humano, dentro do sistema prisional elas também têm uma outra função: reduzir os dias daquelas pessoas lá dentro. A Lei de Execuções Penais (LEP) determina a possibilidade de remição de pena para condenados em regime fechado ou semiaberto que cumprirem as atividades determinadas para este fator. A remição diz respeito ao abatimento de dias da pena aplicada após a conclusão de atividades laborais (dentro ou fora do presídio), ou educativas.
O policial penal Amarildo Monteiro, que é um parceiro dos professores na Colônia Penal de Simões Filho, oferece assistência jurídica aos apenados e está sempre disponível para explicá-los a respeito de suas penas e possível aplicação de leis mais benéficas.
Ele explica que é possível remir dias de pena por meio de trabalho, da frequência escolar e da leitura de livros. “A cada três dias de trabalho, ele consegue diminuir um dia da pena. A cada 12 horas de estudo, ele consegue diminuir um dia da pena.
A cada obra literária lida ele tem direito a quatro dias de remição por mês, limitado a um máximo de 48 dias no ano”, detalha Amarildo. A coordenadora pedagógica Valuza Saraiva destaca que a possibilidade da remição de pena é apenas o “acender do fósforo”, mas é o interesse pela atividade que faz as labaredas. “Existe interesse pela remição pela leitura? Sim, é óbvio. Pela condição deles é normal, qualquer um que estivesse nessa condição iria querer essa remição. Mas a gente acredita que hoje, apesar dos poucos meses, podemos apontar o gosto pela leitura”, garante.
Embora o desejo pela antecipação da liberdade seja legítimo, já que ninguém quer estar preso, não é isso que move os estudantes do Anexo da Colônia Penal de Simões Filho. E.C. garante que, para ele, ir à escola, participar ativamente das aulas e ler os livros é mais importante que a remição de pena.
“No meu caso, não se resume simplesmente à remição de pena. Eu tenho certeza que tem algo prioritário, que é o conhecimento. Sair daqui com um novo pensamento, uma nova mente, sabendo que dentro desse sistema tivemos alguém que se preocupou conosco, nos deu oportunidade e nos mostrou um mundo totalmente diferente de tudo que eu vinha vivendo”, considera E.C, qua já conseguiu remir de sua pena total 141 dias.
Para Amarildo, o papel da educação num ambiente como uma colônia penal é fundamental para a reinserção dessas pessoas na sociedade. “Um dia essas pessoas vão sair e elas têm que estar melhor do que entraram. Senão pode acontecer de elas reincidirem na prática do crime, e é isso que nós não queremos. Queremos que elas saiam, retornem à vida em sociedade e que a pena tenhacumprido o seu papel, que é o de ressocializar”, finaliza.
A possibilidade de remição de pena, no entanto, nem sempre é bem vista pela sociedade. O diretor da unidade acredita que é preciso levantar essa discussão, já que essas pessoas não estão em prisão perpétua. “A grande maioria da sociedade não consegue enxergar que a pena privativa de liberdade não é ad eternum. A pena privativa de liberdade serve apenas para aquele momento, aquele erro que ele cometeu. Ele foi julgado, foi punido, teve direito à defesa, e está cumprindo pena.
Mas todos os outros direitos dele estão garantidos”, explica Tarcísio. A experiência dos apenados e a forma como eles se comportam dentro do sistema após atividades como as de leitura provam que o método funciona se bem aplicado.
E.L. destaca que também tem pensado para além da remição. “Acredito que o projeto não é só para remir a pena, mas para que as pessoas tenham informação e saibam dos seus direitos. Eu já li um livro sobre execução penal e essas coisas ajudam muito porque as pessoas não sabem dos seus direitos e a quem a gente cobra por esses direitos. Através da leitura a gente pode ter essas respostas”, aponta.
Repensar o passado para planejar o futuro
A cada dia de aula e a cada livro, muito mais que a possibilidade de antecipar a liberdade, é também uma maneira de transformar a experiência ali dentro e planejar um futuro diferente para quando puderem sair. Esse é o pensamento de M.V, que aos 23 está condenado a uma pena de 6 anos e 8 meses, da qual ele já cumpriu 2 anos e 11 meses.
“Abriu a porta para eu enxergar outro mundo, um futuro melhor. Pude ver que a gente não tá só baseado nessa vida de criminalidade, e com estudo a gente pode ser uma pessoa trabalhadora, honesta”, disse. “Muitos jovens estão se dedicando para sair daqui e dar orgulho para suas famílias, ser alguém na vida, porque essa vida que a gente tenta trilhar não vai nos levar à felicidade, só ao desgosto”, conclui M.V.
Na biblioteca da Ala B da colônia, que leva o nome de Nelson Mandela, há muitos livros disponíveis para leitura e os apenados não escondem suas preferências. Uma delas não surpreende: “Mandela: meu prisioneiro, meu amigo”, que narra a experiência do líder sul-africano no cárcere. “Eles escolhem os livros que querem ler”, revela Valuza. “Cada caso é um caso, tem muitos que leem livros super densos mas têm dificuldades de ler Pai Francisco, porque é um livro que mexe com suas dores internas. Não é que não tenha capacidade de leitura, mas sim porque o livro mexe com as emoções”, explica.
Esse poder de identificação é o que faz com que os livros possam mexer tanto com esses homens. A.S, de 25 anos, viveu essa experiência ao ler o livro Pai Francisco, da autora Marina Miyazaki Araújo. “É uma história que fala de um pai que se encontra preso e que tem uma filha, mas em momento algum a filha dele o vê como um prisioneiro, sempre como herói”, conta A.S. “E é isso que me inspira muito, porque apesar dos erros que cometemos no passado, temos que buscar nossa melhora dia após dia. Esse livro aqui, essa matéria-prima que trouxeram para nós, é excelente, nos distrai, eleva nossa auto-estima”, declara.
Os estudantes conseguem passar essa sensação de autoestima elevada até mesmo para quem não participa das atividades com frequência. Valuza conta que um projeto específico tem chamado a atenção da galera. “Esse ano tivemos uma grande ação, que ainda está em curso, que é com o livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, um baiano que tem tido muito sucesso por conta da sua produção que toca, principalmente, em aspectos econômicos e sociológicos. Tem sido um debate com mais de 20 internos lendo, tanto estudantes quanto internos que não são estudantes, mas desejam participar da proposta”, diz.
Além de Valuza, Shirley e Amarildo, outros três professores fazem parte dessa missão. Patrícia Vasconcelos, Nailton Rocha e Humberto Torres completam o time que está trabalhando pela mudança de vida dos apenados da colônia. Os estudantes reconhecem a importância dessas seis pessoas para o desenvolvimento deles ali dentro.
O olhar de admiração, a quietude para prestar atenção em cada palavra que eles dizem demonstra que o respeito está presente na sala de aula. Shirley, que está há cinco meses atuando na colônia, entende perfeitamente que ela tem uma missão a cumprir ali dentro.
“Eu já compreendia o meu papel enquanto professora, mas ao chegar aqui e conhecer esses alunos, olhar para eles... o olhar de cada um desses meninos com esperança depositada no que eu estou falando para eles é algo transformador”, garante a professora. “A escola aqui é o marco da mudança na vida desses meninos. Eu sei que eles precisam entender o outro lado da sociedade, precisam conhecer que é possível sim ter uma vida digna, reencontrar o caminho lá fora. É por isso que a gente trabalha, educa, é por isso que a gente quer muito que esses meninos percebam que a educação para eles é a grande esperança de transformação”.