Os ventos de Santa Bárbara, no catolicismo, e de Iansã, no candomblé, trouxeram o que Maria Izabel Batista, organizadora dos festejos em homenagem à santa/orixá no Mercado de Santa Bárbara, precisava em 2017. Faltando um mês para o evento, ela não tinha dinheiro para arrumar o mercado, nem comprar os ingredientes para o caruru que serviria ao povo.
Clóvis Pereira, que trabalhava com Dona Izabel, resolveu tentar a sorte. Ele pediu R$ 10 para ela e jogou no bicho. Apostou no 2577, número da placa de um fusca que tinha ficado em sua mente desde a noite anterior. Acertou no primeiro prêmio e no terno de dezena e garantiu o prêmio de R$ 30 mil.
"Cheguei para Dona Izabel e disse: aqui está o dinheiro para sua festa", relembra Pereira, que hoje integra a comissão organizadora dos festejos. "Ela me perguntou de onde tinha vindo todo aquele dinheiro. Eu disse: foi ‘ela’ (a santa) quem mandou", acrescenta, enquanto pintava as paredes do corredor da gruta da imagem de Santa Bárbara no mercado.
Infelizmente, Dona Izabel faleceu em 2021, mas deixou a missão da celebração para Tânia Reis, 63 anos, comerciante de uma loja de ração e artigos pet na Baixa dos Sapateiros. Nascida e criada na Baixa dos Sapateiros, a “herdeira” de Izabel conta histórias de sua infância no mercado, que era considerado o quintal da casa dela. Festas e músicas sempre estiveram presentes na vida de Tânia, o seu pai era o músico Bira, da banda do programa de Jô Soares.
"A gente corria isso aqui tudo, não havia paredes de alvenaria, eram barracas de madeira. Na parte central tinha o box da Sergipana, casa de secos e molhados, de onde tirávamos lascas de carne seca e comíamos com farinha, escondido do dono. Era tão bom!", suspira.
Tânia também lembra de Dona Margarida, a florista que era dona de um macaco para quem fazia caretas. Um dia o bicho morreu, e a comerciante culpou a menina. “Ela não podia me ver que corria comigo do box dela" – se diverte.
Dentre outras lembranças do mercado, estão as festas e a imagem da santa que ficava em um altar discreto e pequeno no corredor. Hoje essa imagem está na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho.
Custos para organizar a festa
Antigamente todos os comerciantes da Baixa dos Sapateiros ajudavam a financiar a festa, mas a maioria virou evangélica e diz que não pode ajudar. Apenas um negociante continua colaborando, mas prefere não se identificar. "As despesas são altas, tinta para pintura de paredes, ingredientes para o caruru, gás, bandeirolas, carretos, velas, flores, dentre outros. O custo médio é de R$ 28 mil", conta.
Este ano o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) através da Igreja do Rosário, vai bancar parte da verba.
Tudo junto e misturado
A festa de Santa Bárbara é um grande encontro de pessoas para rezar, agradecer, pagar promessas, dançar e beber. Alguns fiéis são adeptos do candomblé, outros são da umbanda e católicos. Até o padre que reza a missa também faz parte dessa grande família ecumênica.
O sacerdote Clemente de Deus é da Igreja Ortodoxa Bielorrussa Eslava no Estrangeiro. Sua paróquia, dedicada a São Jorge e à Santa Bárbara, fica no bairro de Cajazeiras X. Ele reza missa toda primeira quarta do mês e faz a celebração no mercado, no dia da Santa Bárbara.
"O dia de Santa Bárbara para mim é dia de festa e agradecimento, dia de louvor e adoração ao Deus vivo, único e verdadeiro, através do exemplo dessa mulher virgem e mártir. Celebrar este dia é como celebrar o encontro entre o céu e a terra, entre a igreja celeste, triunfante, e a igreja militante e igreja terrena. Somos todos nós” - diz.
Sobre missa no mercado, padre Clemente: "É ser missionário como Cristo, considera que é ir ao encontro das pessoas que querem ouvir a palavra de Deus. Os irmãos de matriz africana também querem ouvir sobre o amor e o perdão.
A agenda do religioso é bem cheia neste dia. Começa às 7h no mercado de Santa Bárbara. Depois, às 10h, outra missa no auditório da pedra de Xangô. De lá, Clemente segue para Feira de Santana, onde realiza mais uma celebração. E volta ligeiro para o caruru na casa de Pai Jonatas de Oya, na ladeira da Lapinha.
Devoto de São Jorge e Santa Bárbara, só podia ser um guerreiro da fé para enfrentar preconceitos e vencer desafios.
Soma que importa
Robson do Agogô, 49 anos, trabalhador do pólo petroquímico, ajuda na festa há três anos. Este ano doou 50 quilos de massas de acarajé, 3 mil quiabos, 30 litros de dendê, dois sacos de cebola e 10 quilos de camarão seco para o preparo dos acarajés, (prato típico oferecido nas festividades dedicadas a Iansã), tradicionalmente
distribuídos para os participantes da festa. esses ingredientes serão usados pela festeira e comerciantes do mercado.
"Toda ajuda é sempre bem vinda" afirma Tânia dos Reis.
"A soma é que importa. Precisamos fortalecer nossa religião" – diz Agogô
Agradecimento
Em meio a escadas para a pintura e bandeirolas baixas, Patricia Santos, 46 anos, reza e pede para Clóvis, que está pintando o entorno da gruta, fazer uma foto dela junto à imagem da santa. Vinda de Nazaré das Farinhas, a 77 quilômetros de ônibus de Salvador, ela veio agradecer pela sua vida e a de seu filho. Ambos sofreram um acidente de moto, na quarta-feira (29/11).O pneu do veículo estourou, caiu no mato e o filho caiu na pista, entre os carros que passavam em alta velocidade.
"Vim aqui para agradecer pela vida do meu filho em especial" - fala emocionada. E acrescenta: "Sou filha de Matamba (Angola um dos nomes de Iansã no candomblé da nação Angola). Ela é minha mãe".
Capela
A gruta de Santa Bárbara no mercado foi construída há 21 anos, quando Dona Izabel sonhou com a padroeira pedindo para ter uma capela no local. A lapinha feita de pedras fortaleceu e uniu pessoas que, sem ela, nunca se encontrariam e trocariam sorrisos, olhares e abraços apertados. Todos que chegam ali, levam flores e velas, fazem pedidos e agradecem. São irmãos de uma mãe que veio do outro lado do mundo (Turquia) para adotar e aconchegar filhos e filhas em seus braços, que possuem a força dos ventos, dos raios e das tempestades.
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