Quem nunca se rendeu aos vídeos fofos de gatos nas redes sociais? Ver esses animais sendo bem cuidados e brincando conquistou o mundo virtual e virou uma verdadeira febre. No entanto, o cenário é bem diferente no bairro da Saúde, em Salvador, onde casos de maus-tratos a animais têm se tornado frequentes e alarmantes.
Na madrugada do último dia 30, uma moradora da Rua Jogo do Lourenço, que preferiu não se identificar, resgatou um gato em estado grave. A vítima, encontrada com a boca destruída e sem dentes, agonizava de dor e não resistiu às lesões. "Eu passava pela rua às 3h30 para marcar um médico e vi o gato tremendo de dor, num estado deplorável. Procurei ajuda, mas ninguém queria se responsabilizar", relatou a moradora, que há poucos meses perdeu seu próprio gato, envenenado e queimado com ácido.
Casos como esses são recorrentes na região e têm revoltado os protetores de animais, que denunciam a violência extrema cometida na região. Edite Cedraz, protetora atuante no bairro, descreve o que considera uma rotina de terror: "Resgatamos a gata Belinha na Rua da Poeira, vítima de pauladas. Ela perdeu uma orelha, a visão e o olfato devido às pancadas no rosto. Hoje, só consegue comer e beber com ajuda de uma seringa, pois não sente cheiro e não enxerga. E os casos não param; acabei de resgatar outro gato com sérios problemas respiratórios após ter sido chutado e agredido".
A inauguração do Hospital Veterinário Municipal trouxe a esperança de um acolhimento mais digno aos animais feridos. No entanto, as protetoras locais destacam que o atendimento é restrito das 8h às 17h, impossibilitando resgates noturnos, quando muitos desses crimes ocorrem. Além disso, a falta de internação e a indisponibilidade de procedimentos básicos fazem com que protetores dependam da rede particular, onde os preços de exames e medicamentos são elevados. Com essa situação, a maioria recorre a ONGs e depende de doações.
Para Janaína Rios, protetora e fundadora da ONG Célula Mãe, a sensação de impunidade alimenta o ciclo de violência. "As pessoas têm a certeza de que não serão punidas por esses crimes. Normalmente, são pessoas com histórico de crueldade e moral comprometida. O foco da Célula Mãe é o controle populacional, porque a raiz desses abusos é a quantidade de animais sem assistência e abandonados. Quanto maior o abandono, maior o volume de maus-tratos".
O que configura maus-tratos?
Engana-se quem pensa que só a agressão física configura maus-tratos. A negligência, o abandono e a falta de cuidados essenciais também são crimes. Segundo a Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/BA, maus-tratos abrangem a falta de alimentação, cuidados veterinários, abrigo adequado e proteção contra agressões e condições adversas. A lei estabelece que o tutor é responsável pelo bem-estar do animal, e violar essa responsabilidade é crime.
O crime de maus-tratos está previsto na Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) e prevê detenção de três meses a um ano, além de multa. Em 2020, as punições foram endurecidas, com a pena para maus-tratos subindo para dois a cinco anos de reclusão, além de multa e proibição de guarda. Nos casos em que o animal morre, a pena é agravada. Contudo, a falta de fiscalização e a demora nas investigações tornam essas punições, na prática, quase inexistentes.
Buscamos esclarecimentos com órgãos públicos sobre as denúncias de maus-tratos em Salvador, mas a DiPA (Diretoria de Proteção Animal da Prefeitura de Salvador) parece não conseguir resolver boa parte do problema. O Ministério Público recomenda que as denúncias sejam feitas pelo número 127, onde serão encaminhadas para a promotoria responsável em até cinco dias. Ainda assim, protetores e ONGs continuam com pouca resposta efetiva para resolver a questão.
A situação crítica dos animais na Saúde exige urgência nas investigações e ações mais rígidas de proteção. Para a comunidade local e os protetores de animais, a sensação de abandono se intensifica a cada novo caso de crueldade não punido.