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Salvador 475 anos - 29/03/2024, 07:00 - Madson Souza - Atualizado em 29/03/2024, 07:14

Centro Antigo é marcado por guardar memória

A arquitetura pensada pelo colonizador português e os elementos da cultura africana no espaço são uma síntese da cidade e até da história do país

O Centro Histórico de Salvador (CHS) também é uma parte específica do Centro Antigo
O Centro Histórico de Salvador (CHS) também é uma parte específica do Centro Antigo |  Foto: Reprodução/ Site IPHAN

Paralelepípedos, casarões coloridos, igrejas barrocas e praças históricas; é o Centro Antigo que guarda a memória viva dos 475 anos de Salvador. A coexistência da arquitetura pensada pelo colonizador português e os elementos da cultura africana no espaço são uma síntese da cidade e até da história do país. E só com o pé no chão e o ouvido atento que dá para experimentar essa região já tão conhecida, mas ainda com tanto para se descobrir.

Quem afirma isso é o jornalista, escritor, agitador cultural e dono do restaurante Cantina da Lua; Clarindo Silva. “Andar a pé e de ônibus é a melhor maneira de conhecer a geografia física e social do lugar”. E tem muita coisa para conhecer. De acordo com informações da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), o Centro Antigo compreende os bairros: Centro, Centro Histórico, Comércio, Dois de Julho, Calçada, Lapinha, Nazaré, Tororó, Barris, Macaúbas, Barbalho, Saúde, Santo Antônio e Liberdade.

Além de um bairro, o Centro Histórico de Salvador (CHS) também é uma parte específica do Centro Antigo, que está delimitada em função de marcos históricos como o Mosteiro de São Bento e o Forte Santo Antônio Além do Carmo. O CHS foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1984 e reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como Patrimônio da Humanidade em 1985.

Repleta de marcos históricos, a região também é muito mais que isso. De acordo com o museólogo e idealizador da empresa Odu Imersão Cultural, Eldon Luís, “o Centro Antigo e Histórico de Salvador são mais do que simplesmente áreas urbanas antigas, são testemunhos vivos da história, da cultura e da resiliência do povo baiano, que continuam a inspirar e a moldar o destino da cidade”. E quem entende bem a importância do Centro Histórico é Clarindo Silva.

Figura folclórica

Clarindo já é uma figura quase que folclórica do Centro Histórico. Não é difícil encontrar com ele - rotineiramente trajado de branco -, nos arredores da Cantina da Lua. Desde os 12 anos de idade que o agitador cultural vive na área e conta que já viu muita coisa.

Quando ele chegou à região, o Centro Histórico ainda vivia as consequências de ter deixado de ser um grande centro político, social e econômico. Clarindo conta que houve durante a década de 40 um processo de migração das famílias tradicionais que abandonaram o território e partiram para o Corredor da Vitória, Graça e Barra. Ele acompanhou também um processo de esvaziamento da área nos anos 70, com o fechamento de pontos importantes para os moradores da zona.

Como forma de combate ao abandono do Centro Histórico, Clarindo fundou com familiares, companheiros e sambistas da cidade, em 1983, o Projeto Cultural Cantina da Lua, cujo o primeiro ideal sempre foi “a luta pela revitalização do Centro Histórico e pela preservação da memória cultural da própria Bahia”.

A iniciativa foi responsável por parte essencial do processo de revitalização do CHS, e desde sua fundação, já promoveu milhares de eventos culturais no local, dentre festivais de música, cinema, peças de teatro, lançamentos de livros e outras manifestações artísticas.

Ao contar sobre a Cantina da Lua, Clarindo não esconde o orgulho que tem do lugar. “Eu a vejo como quartel-general da luta intransigente pela defesa do Centro Histórico e da preservação da nossa memória cultural. A Cantina é a porta de entrada do Pelourinho e o marco da resistência na luta pela revitalização”.

Com mais de cinquenta anos defendendo a preservação do Centro Histórico de Salvador, Clarindo Silva ainda conserva no olhar e na fala o mesmo amor que motivou toda a trajetória vivida na Cantina da Lua. “Meu partido, abaixo de Deus, é o Centro Histórico. Esse Centro Histórico, que as pessoas precisam se apropriar. Esse lugar, que é um lugar mágico, magnífico. Aqui, está a história desse país”.

Cidade Alta e Cidade Baixa

Mas até chegar ao Centro Antigo que conhecemos hoje, muita coisa aconteceu. O historiador Daniel Rebouças explica que nos últimos anos vem sendo recuperada a contribuição da mão de obra afro-brasileira e também ameríndia na construção dessa paisagem, que sempre teve os registros de memória dos portugueses mais destacados.

A divisão entre Cidade Alta e Cidade Baixa, por exemplo, é uma forma de ocupação relacionada com Portugal, mas não foi uma escolha natural dos portugueses. Ele explica que a ocupação portuguesa foi inicialmente na Barra, mas que por conta da resistência indígena, o país europeu foi obrigado a escolher um ponto alto para se defender melhor.

Essa forma de ocupação também é compartilhada pelos indígenas Tupinambás, que valorizavam regiões altas ou próximas de grandes rios. “Era uma forma de ocupação mais comum deles. Isso explica por que foram encontrados recentemente bastantes achados arqueológicos na região do São Bento, por exemplo. Prova que a ocupação Tupinambá nessa região alta, vamos chamar assim, em contraponto a uma baixa, também faz parte da história indígena”, afirma o historiador.

Já com relação à cultura negra, Daniel comenta que ela acontece de várias formas nesse espaço, principalmente no cotidiano. “Essa ocupação acontece do ponto de vista também da arquitetura, dos espaços, mas principalmente através de uma ocupação urbana cotidiana: na forma de trabalho, na forma de transporte, na forma de cultura”.

Essa coexistência de diferentes culturas é um dos principais fatores da formação da capital baiana, de acordo com o historiador. “O fato é que os sinais dessas contribuições, digamos, principais da formação soteropolitana, que são os portugueses, os africanos e os seus descendentes, os indígenas e depois também outros grupos de imigrantes, marcam muito a cara dessa região”.

Coreto do Santo Antônio

O Centro Antigo é uma região histórica e hipnotizante, mas também é palco para a rotina ordinária dos soteropolitanos. É na praça ao redor do Coreto do Santo Antônio, que mães tomam uma cerveja no fim de tarde enquanto observam a brincadeira dos filhos, uma caixa de som toca Cidade Negra num volume agradável, e pessoas, como o fotógrafo Paulo “Pilha”, se reúnem para esperar o pôr-do-sol.

Paulo, sem pressa, aguarda. “De repente, o bom baiano, ele sabe a velocidade que ele tem pra chegar, pra subir a ladeira”. Enquanto contempla, ele conta que nem sempre o Santo Antônio Além do Carmo foi esse pólo gastronômico - “sempre teve um bom rango” -, mas era uma região menos movimentada.

Quem também viu muitas mudanças na região do Centro Antigo é a coordenadora da Casa Cultural Reggie, Jussara Santana, que há 45 anos mora no Pelourinho e já se sente parte do território. “Ando na Rua do Passo, em que foi filmado ‘Um Pagador de Promessas’, vi Michael Jackson e Nelson Mandela quando vieram pra cá. Faço parte disso. Tive meus filhos aqui, meus netos, sempre aqui na rua, sempre trabalhando com a cultura. Esse é um espaço de afirmação da diversidade cultural que vem trazida pelos nossos ancestrais. É a cara do Brasil”.

É na preservação dessa memória e dessa “cara do Brasil”, que o museólogo Eldon Luís vê o futuro do Centro Antigo e especialmente do Pelourinho. “O Pelourinho tem o potencial de se tornar um verdadeiro centro cultural e econômico não apenas de Salvador, mas também de todo o mundo. No entanto, isso requer um esforço conjunto do governo, da comunidade local e dos setores privados para preservar sua identidade cultural única”.

A memória viva dos 475 anos de Salvador está nos paralelepípedos, casarões coloridos, igrejas barrocas e praças históricas; na coexistência entre diversas culturas que formaram o nosso país. Mas também nas pessoas que habitam o Centro Antigo, nas suas fabulações, lendas e histórias. Uma cidade é tão antiga quanto sua memória permite lembrar e o Centro Antigo é a garantia de que não iremos esquecer.

Igrejas


“Eu não conheço nenhum lugar no mundo que consiga ter em um perímetro de menos de um quilômetro, 10 igrejas”, afirma Clarindo Silva. Não sei se essas igrejas existem dentro de um perímetro exato de um quilômetro, mas essa proximidade entre tantas estruturas religiosas é uma das idiossincrasias que fazem o Centro Antigo. Proximidade que vai para além da distância física e toma forma na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em que é celebrada toda terça-feira uma missa católica que incorpora instrumentos musicais da cultura africana.

Esse é o presente de uma igreja que no passado foi construída por escravos e ex-escravizados, que só tinham acesso a esses espaços para prestar serviços ou fazer a catequese. O cônego Lázaro Muniz, capelão da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, explica que esse é um local de acolhida da população negra.

“O Rosário com certeza constitui um dos marcos históricos dessa cidade, onde ali os negros puderam ser acolhidos e viver enfim a fé cristã católica, mas a partir do seu olhar de negritude. Isso é importante e essa igreja se traduz hoje como um dos polos de manifestação da religiosidade cristã católica e de uma religiosidade cristã católica com seu caminho de inculturação, de acolhida dos elementos de negritude como instrumentos africanos, com celebrações inculturadas”.

E essa acolhida e esse movimento de resistência vai para muito além da presença de instrumentos da cultura africana como o atabaque e o agogô. A mordoma de culto e membro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Adilma Sacramento, conta que “o que me chamou mais a atenção aqui foi realmente a cor negra”.

Ela afirma que cresceu se achando feia e lidando com imposições, como a de não poder usar batom vermelho ou esmalte vermelho por conta de sua pele. Foi ao conhecer a missa de terça-feira na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos que Adilma mudou seu olhar.

“Quando cheguei aqui, me modifiquei. Passei a me encontrar, passei a gostar de mim, passei a gostar da minha cor. Foi isso que me atraiu mais. Chegava aqui e via as irmãs daqui com os cabelos de black e tal… com o passar do tempo fui acompanhando e me envolvendo com as atividades da igreja até chegar no estágio em que estou”.

Para o cônego Lázaro, esse papel de resistência não pode se perder dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário. “O Rosário é um lugar para fazer eco dessa cultura, dessa beleza, dessa dinâmica da fé, dessa dinâmica da resistência, da espiritualidade, de resistir diante de todo o racismo. Racismo religioso, racismo estrutural, racismo institucional, de todo esse processo de banalização da fé, de banalização das pessoas, de exclusão dos negros e negras, que ainda está hoje tão presente. O Rosário continua assim nessa resistência”.

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