O som do silêncio é algo tão ensurdecedor que é capaz de causar ilusões auditivas. Embora essa afirmação seja cientificamente comprovada, não há como definir quais são as projeções da mente capaz de alcançar essa baixa frequência sonora. Ou a motivação. A subjetividade desse conceito esbarra no alto andar de um apartamento no bairro do Campo Grande, em Salvador. Há um ano, o lar de Sandra e Sergio Pacheco foi abalado por um estampido que silenciou todos os sons da casa. Em uma terça-feira, nada qualquer, morreu a filha mais velha do casal, Cristal Rodrigues Pacheco, aos quinze anos, vítima de um latrocínio no curto caminho entre a casa e o colégio.
Além dela, outros 87 cristais foram quebrados na Bahia em 2022 da mesma forma: roubou seguido de morte. No ano anterior foram 137. Uma queda que não conforta quem sofre essa perda.
“Ela iria completar 16 anos no último dia 13 de junho. Os próximos anos dela eu não vou poder acompanhar porque ela não vai mais estar aqui. Se eu quiser visitar a minha filha, vou ter que ir ao cemitério, só olhar aquela caixinha onde ela está enterrada”, desabafou Sandra Pacheco. “Eu sinto falta dessa rotina, dessa agitação que a gente tinha todos os dias para se arrumar e ir à escola.”
Os olhos de Cristal Pacheco se fecharam pela última vez por volta de 7h da manhã na calçada do Palácio da Aclamação. Ao ser abordada pelas autoras do crime, a estudante estava na companhia da mãe e da irmã mais nova.
A família ainda tenta se recuperar do “estampido” causado pelo gatilho disparado por Andreia Santos Carvalho que, junto com Gilmara Daiam de Sousa Brito, regeu a sinfonia macabra de uma só nota que atingiu o coração o Cristal e silenciou a vida da família. Contornos humanos que não constam nos frios números do Fórum Anual de Segurança Pública, apresentado em 2023 com incontestável queda, embora essa teoria seja de uma relatividade que nem os livros do físico Stephen Hawking sejam capazes de explicar.
Sandra relatou ainda que revive esse momento todos os dias. Como uma espécie de looping infinito típico das escalas musicais. “Elas anunciaram o assalto e mostraram para mim um objeto que pensei ser um controle remoto. Eu nunca tinha visto uma arma na vida. E mostraram uma faca tipo peixeira. Pediram meu celular, mas eu não estava com ele no momento. Quando pediram relógio e aliança eu só fiz o movimento para retirar do pulso e ouvi o estampido. Ficou um ‘zunido’ no meu ouvido. Fiquei sem entender nada até ver Cristal pôr a mão no peito esquerdo e escorregar para o chão.”
A rotina marcada por uma sonoridade que começava com diferentes despertadores, passava pelo giro frenético do liquidificador e altas conversas ininteligíveis de Fernanda, a caçulinha eufórica, e Cristal, na melhor versão da sonolência diária. Provavelmente os filósofos e psicólogos da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, jamais saberão que a ilusão sonora projetada pelos pais de Cristal seja somente o cotidiano de outrora: uma família plenamente feliz com o crescimento sadio dos rebentos. É lembrança de Sergio Pacheco.
“Eu tento fazer das lembranças agradáveis. Momentos bons. Não levar para uma coisa triste. É a única coisa que posso fazer para tentar não sofrer”. Um dos lampejos de memória favoritos dele giram em torno do interesse da filha por música. O momento tal pai, tal filha. “Cristal passou a se interessar tanto que pediu uma vitrola para ouvir discos e, logo depois, decidiu aprender a tocar guitarra. E eu ensinava. Eu fazia tudo com ela. Nunca saía de casa sem ela. Para onde iria?”
A missa de um ano da morte de Cristal Pacheco será realizada às 8h do próximo dia 6 de agosto, na Capela do Colégio Sacramentinas, no bairro do Garcia. A família é representada pela Defensoria Pública. O órgão não se manifesta sobre o caso, que corre em segredo de Justiça.
Comunidade escolar
Cristal Pacheco estudava no Colégio Mercês. No dia da morte dela, a notícia chegou rápido à comunidade escolar. O impacto gerou um ‘caos’ entre os estudantes e professores. A irmã Velarci Cruz, diretora da instituição relatou a dificuldade para controlar a situação.
“Todos estavam muito abalados. Os alunos chorando nos corredores. Os professores nervosos, muitos sem condições de entrarem em sala de aula. Nesse momento precisei ser mais dura. Era preciso fazer entender que as coisas precisam continuar. Naquele momento era importante evitar que a comunidade escolar entrasse em colapso.”
Ingrid Queiroz foi uma das poucas pessoas que acompanhou o ocorrido dentro e fora da esfera escolar. A recepcionista estava a caminho do Colégio Mercês quando o crime ocorreu e se deparou com o desarranjo daquele dia logo na entrada da instituição. “Eu pude ver o desespero no olho dos pais e alunos que estavam na escola. Os mais próximos de Cristal estavam inconsoláveis. As aulas foram suspensas por mais de um dia. E houve uma passeata pelo que ocorreu.”
Um protesto contra a violência foi realizado no dia seguinte à morte da “integrante da família Mercês”, como definiu a madre. O ato ganhou visibilidade nacional. Guiada pela fé no Cristianismo, irmã Velarci acredita que a adolescente tenha cumprido o papel dela em vida. “Cristal está nos braços do Pai. Ele jamais a tiraria daqui, assim acredito, para leva-la a um lugar pior”.
Dentro desse conceito, para ela, não cabe conjecturas sobre o que ou como seria o desenvolvimento da estudante no futuro. Contudo, ressalta que a aplicação estudantil da menina era notável. “Ela era discreta e quieta. Não pela timidez, mas pela alta capacidade de atenção aos detalhes.”
A morte de Cristal Pacheco jamais sairá da história dessa instituição centenária, até porque o Colégio Mercês encerrou as atividades ao fim do ano letivo de 2022. Até os últimos dias os alunos receberam acompanhamento psicológico para superar a perda traumática da colega, no entanto, o diretor administrativo Leonel Reis, explica que o encerramento das atividades não está relacionado ao crime.
“De fato não houve nenhuma relação dessa tragédia com o fechamento do colégio. Há pelo menos oito anos um estudo já apontava nessa direção por causa da perda de alunos, assim como havia um estudo para verificar por que isso estava acontecendo. A migração da população dessa área foi um fator definitivo, entre outros tantos que aconteceram. A decisão só havia sido protelada por dois anos.”
Entre os áureos anos de 1970 e 2000, o Colégio Mercês chegou a abrigar 2 mil alunos no corpo estudantil. A instituição fechou as portas com menos de 200 pastas de matriculados arquivadas nas gavetas da secretaria.
Criminalidade e Combate
Os casos de furtos nos pontos de ônibus, nas ruas, vielas e portas de escolas do Centro de Salvador já não são novidade. A sensação de insegurança já existia antes do assassinato de Cristal Pacheco e perdura após a tragédia de 2 de agosto de 2022. Antônio Pereira, porteiro de um dos inúmeros prédios da região é enfático no relato.
“Isso aí não para não, meu amigo. É direto. Mercês, Avenida Sete, é tudo um perigo. Essa rua do Banco dos Ingleses mesmo, não tem ande depois que anoitece. ‘Sacizeiro’ direto. Você não pode ficar em um ponto desses aqui, de bobeira, que eles tomam tudo.”
A ação da criminalidade e dos ‘sacizeiros’, como chamam os usuários de drogas que perambulam nas ruas, têm esvaziado o comércio local, que outros tempos era o principal da capital baiana. O comerciante Pedro Alves é uma vítima indireta disso. “É muito ‘sacizeiro’. Abordam os clientes na entrada e na saída. Nem todos são ladrões, é preciso diferenciar. Só que a maioria rouba para sustentar o vício.”
Para ele, houve um aumento na quantidade de gatunos nos últimos quatro meses. Não só no Centro, mas também nos cartões postais da cidade. “Quando aconteceu o problema com Cristal, deu uma diminuída. Depois voltou de novo. Eu estou falando daqui porque estou aqui, mas isso acontece na cidade inteira. Na Barra e no Pelourinho nem se fala. E se for caminhando daqui até lá, piorou.”
Combate
O policiamento ostensivo no Campo Grande e adjacências é feito pelo 18º Batalhão da Polícia Militar, que informou que o bairro possui patrulhamento diuturno com equipes atuando de forma estratégica e posicionada em locais mais propensos à criminalidade. Explicou ainda que o policiamento é feito por guarnições com viaturas, motocicletas e a pé, promovendo abordagens ou blitz nas diversas ruas do bairro.
Além disto, a unidade afirma que possui uma relação estreita com a comunidade local, dedicando total atenção às demandas que são repassadas por meio das redes sociais, por telefone, além das que são informadas pelo 190.
A falta de denúncia dos casos de furto e roubos tornam a estatística para esses crimes imprecisa, mas a situação é diferente nos casos de latrocínio, crime que vitimou Cristal Pacheco. Nos últimos dois anos, 224 famílias baianas perderam os cristais delas.
Com isso, a Bahia figura em 3º lugar no ranking de vítimas de latrocínio entre as capitais, atrás somente de Pernambuco e São Paulo. Vale ressaltar que a Legislação entende que o latrocínio é um crime contra o patrimônio e não contra vida.
Mãos que levaram Cristal
Em agosto de 2022, o Ministério Público estadual denunciou Gilmara Daiam de Sousa Brito e Andreia Santos Carvalho pelo crime de latrocínio perpetrado contra Cristal Rodrigues Pacheco e por duas tentativas de roubo qualificado em relação à mãe e à irmã da adolescente.
Gilmara e Andrea ‘Rasta’, a atiradora, são internas do Presídio Feminino da Mata Escura desde 9 de agosto de 2022 e passaram pela audiência de instrução e julgamento no dia 19 de janeiro de 2023. O caso corre em segredo de Justiça e não há previsão de quando serão julgadas.
Gilmara
No dia do crime, Gilmara Daiam de Sousa Brito possuía passagens por roubo e tráfico de drogas e respondia em liberdade. Também tinha mandado de prisão em aberto expedido pela 1ª Vara de Tóxicos de Salvador em março de 2022. Antes disso, em 2011, foi flagrada comercializando entorpecentes na capital baiana. Quatro anos depois, em 2015, ela voltou a ser apreendida e autuada na 5ª Delegacia Territorial (DT) de Periperi por prática de roubos. Em 2017, ela foi detida com cocaína e apresentada na 14ª DT da Barra.
Gilmara foi presa em flagrante horas após o crime contra Cristal Pacheco. É representada pela Defensoria Pública da Bahia.
Andreia ‘Rasta’
Andreia Santos Carvalho, conhecida como ‘Rasta’, confessou ter atirado na estudante durante a tentativa de assalto em frente ao Palácio da Aclamação à delegada Andréa Ribeiro, diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Após o disparo, Andreia fugiu para a cidade de Nova Soure, que fica a cerca de 200 quilômetros da capital baiana. Se apresentou com o advogado na sede do DHPP no dia 4 de agosto de 2022, uma quinta-feira, 48h após o crime.
Na capivara de Andreia ‘Rasta’ constam vários crimes de roubo em lojas de departamentos como Americanas e C&A. Latrocínio foi o primeiro. A arma usada por ela no crime foi encontrada na casa de um adolescente na Rua do Sodré, no Largo Dois de Julho. Ele e a arma foram apreendidos pela polícia.
Defesa
Ao contrário de Gilmara, Andreia ‘Rasta’ é representada pelos advogados Elmar Vieira dos Santos e Silvia Maria Bispo. A Defesa dela informou, com exclusividade, que foi feito um pedido para substituição da prisão preventiva por uma medida cautelar de internação na segunda-feira (31).
“Nós pleiteamos a transferência do presídio feminino, onde ela se encontra atualmente, para o HCT [Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado da Bahia], que é indicado para pessoas com transtornos e lá que ela deve ficar custodiada para ser submetida a tratamento”, revelou Elmar.
A Defesa de Andreia parte do princípio da inimputabilidade pela dependência química. Ou seja, por estar sob efeito de entorpecentes, ela não poderia ser responsabilizada pelo tiro fatal dado no coração de Cristal Pacheco na manhã de 2 de agosto de 2022.
“Os documentos que nós juntamos aos fatos e às evidências que estamos levando para o processo apontam que ela é uma dependente química e, ao tempo do fato, era totalmente incapaz de responder pelo caráter ilícito da ação.”
Para comprovar essa tese, o advogado explicou ainda que foi feito um pedido de exame toxicológico que aponta a dependência química de Andreia e que ela estava sob efeito da substância que tira a capacidade de discernimento. “Além disso, durante o cárcere, ela já foi submetida a um exame com um psiquiatra e ela faz uso diário de mais de sete medicações indicadas a pacientes com transtornos mentais”.
O exame aconteceu em junho desse ano, mês que Cristal completaria 16 anos, após ser deferido o pedido feito durante a audiência de instrução, no último dia 19 de janeiro. “Nós agora aguardamos o resultado com o laudo dessa perícia, mas temos no processo uma série de relatórios que apontam a incapacidade dela”, relatou Elmar Vieira.
A identidade do juiz responsável não será revelada porque o processo corre em segredo de Justiça. Caso o magistrado acate o pedido, será enviado um ofício ao HCT para verificação da disponibilidade de vagas e, caso haja alguma, Andreia será transferida em caráter imediato.
A decisão dele ainda não havia sido divulgada até o fechamento desta matéria.
Reação
Ao saber da informação de que Andreia ‘Rasta’ poderia deixar o presídio pela repercussão na imprensa, Sandra Pacheco clamou ao juiz responsável pelo caso que negue ao pedido da Defesa. “Isso é um absurdo, então peço que a Justiça seja feita legalmente. Não burlando, nem inventando doença. Se ela é doente, a família deveria ter cuidado antes dela ir para a rua tirar a vida da minha filha.”
Conserto de cristais
Cristal Pacheco era incomum, como todo e qualquer adolescente de 15 anos. Estudiosa, carinhosa, boa filha, irmã, neta e estudante. Adorava música, tinha carinho especial por animais, assídua leitora de livros, conhecedora profunda de toda cultura inútil em ebulição depositada em uma cabeça pensante da geração Z.
Comuns, infelizmente, são dados da violência que apagam essa descrição para transformar vítimas em números banalizados pela cultura de uma sociedade enferma. Para o especialista em segurança pública, Dudu Ribeiro, existem saídas para evitar mais cristais quebrados.
“Primeiro é importante apontar que não há soluções simples para as questões ligadas a violência e a segurança pública, que são fenômenos complexos da nossa sociedade. É preciso que o governo e o conjunto de instituições incidam sobre diversos fatores. O controle de armas está diretamente relacionado a esse impacto na proteção da vida e outro ponto principal é alterarmos de forma significativa a lógica do que chamamos de segurança pública.”
Dudu Ribeiro entende que o modelo atual privilegia o confronto e a figura dos agentes de segurança. Também questiona o papel das demais pastas no auxílio à Secretaria de Segurança Pública. “Obviamente, a ampliação dos direitos sociais básicos é um outro componente a impactar na produção de segurança para as pessoas”.
“Há décadas o Brasil, assim como grande parte do mundo, investe numa lógica que não tem produzido soluções, muito pelo contrário. É uma lógica chamada de ‘guerra às drogas’, que não só privilegia o confronto, a letalidade e o encarceramento das pessoas, como compromete a possibilidade de saúde das pessoas que venham a fazer usos abusivos das substâncias tornadas ilícitas, como também sequestram parte do orçamento público para a manutenção de uma lógica bélica para atuar sobretudo nas comunidades periféricas e negras.”