Primogênitos carregam um peso, uma responsabilidade. São os espelhos daqueles que vêm depois, são o exemplo a ser seguido, o parâmetro. Passados 50 anos da primeira vez que Salvador viu um bloco afro passar, não dá para pensar diferente: Ilê Aiyê, o primeiro, é a referência.
O Carnaval de 2024 celebra a força de meio século do primeiro bloco afro do Brasil. Cria do Curuzu, da Liberdade, o Ilê Aiyê nasceu de um desejo de ver a avenida e a folia momesca ganhar a cor que essa cidade tem.
“A gente saía daqui para ir à avenida e nos blocos e clubes carnavalescos a gente só via branco”, lembra Vovô do Ilê, um dos fundadores do bloco. “Eu me lembro que um dia nos sentamos ali no largo, e pensamos ‘por que não fazemos um bloco só de negão?’, nos animamos e começamos a organizar”, disse.
Daí para frente é história. O que eles não sabiam, no entanto, é que viraria um marco apoteótico, uma força ancestral de representatividade. Olhando para trás, o Vovô do Ilê sabe exatamente a força de ruptura de um modelo de festa que o Ilê provocou, dando espaço para quem antes só participava da festa na condição de trabalhador, mas nunca de folião.
“O Ilê é um bloco afro que se transformou numa grande organização para ajudar no surgimento de outros, e também na transformação de Salvador, para que a cidade ficasse menos perversa e menos racista. Foi o grande transformador do comportamento do povo negro, trouxe o orgulho de ser negro, uma mudança estética, colocou esse povo de nariz em pé”, afirma.
Essa força se traduz nos palcos, nas manifestações, na dança e no sentimento de pertencimento que o povo negro tem ao ver o Ilê passar. Mas ainda falta. Mesmo com tamanha representatividade, ainda é muito difícil colocar o bloco na rua porque ainda é difícil encontrar investidores, angariar recursos, enxergar parceiros no meio comercial para que, assim como outros artistas e bandas, o Ilê Aiyê possa brincar o carnaval sem pensar em como vai fazer para fechar as contas depois.
“Temos dificuldade de receber o apoio, o investimento de empresários. Muitos deixam de ganhar dinheiro só parta não juntar as suas marcas ao povo negro”, lamentou Vovô. “Fazer filantropia, como nós fazemos, é muito bonito, mas se não tiver dinheiro não tem como ir adiante. E tudo o que recebemos volta para a comunidade porque aqui fazemos circular a economia de formas diferentes, coisa que poucos artistas brancos fazem”, afirmou.
Em tom de desabafo, ele mencionou ainda que o tratamento diferenciado que os blocos afro recebem em relação aos demais artistas, em especial os brancos, é uma verdadeira pedra no sapato. O problema não é força de mídia, porque isso o Ilê Aiyê tem! O que falta mesmo é um olhar de equidade da gestão pública e da iniciativa privada.
A verdade é que a instituição tem que toda uma estrutura filantrópica para manter, vai muito além da banda e dos dançarinos que fazem os shows. “Quantos desses artistas brancos têm ou participam de projetos sociais? O dinheiro que eles recebem fica para eles e para a equipe deles, diferente de nós. Daí passa o carnaval e tudo mundo vai viajar para a Europa e nos ficamos aqui batendo cabeça para pagar dívida”, disse o diretor do bloco.
Toda essa dificuldade para colocar o bloco na rua, a correria para fechar as contas e a invisibilidade que os blocos afro são colocados perante o mercado da música, para Vovô, só pode ser traduzida em um conceito: o racismo estrutural da nossa sociedade, um elemento que não permite que o povo preto e sua cultura sejam colocados em posição de dignidade ou de mérito.
“Para mudar essa lógica as pessoas precisam parar de ser racistas, é simples”, explica Vovô. “E vou além, cobro isso do povo preto também porque precisamos nos fortalecer enquanto comunidade. Nós temos uma elite negra na Bahia que não se envolve ou se interessa pelos blocos afro porque muitas dessas pessoas pensam que são brancas; mas eu penso que você pode até ter um carro bacana, um apartamento num condomínio bonitinho e um salário legal, mas não esqueça que você é negro. Se você esquecer alguém vai te lembrar, e a forma que te lembram é perversa”.
O Ilê Ayiê e os demais blocos lutam dia a dia contra esse sistema, e é batendo tambor, dando ocupação e oportunidade a meninos e meninas negros das periferias da cidade que eles contribuem para a formação de um povo cada vez mais ligado às raízes ancestrais do povo que colocou o Brasil de pé. No primeiro carnaval do bloco, há 50 anos, eles foram recebidos com estranhamento, foram perseguidos e chamados de falsos africanos. Hoje são referência, o ponto de partida de uma história que foi – e segue sendo – escrita a muitas mãos.
Memória de Mãe Hilda: A força da mulher está presente
Ah, se não fosse Mãe Hilda Jitolu! É bem verdade que tudo chegou aqui, aonde chegou, por conta do apoio e da resistência da matriarca do Ilê Aiyê. A mãe dos meninos que colocou essa ideia para a frente será celebrada, inclusive, no desfile de 2024 do Ilê, que carrega o tema ‘Vovô e Popó, com as bênçãos de Mãe Hilda”.
Essa força feminina sempre foi exaltada dentro do Ilê, bloco onde a mulher negra sempre encontrou espaço de empoderamento, como garante Dete Lima, estilista do Ilê, filha de Mãe Hilda. Ela, que dá forma aos mantos lindíssimos do bloco, que veste a Deusa Ébano, sabe a força que o tecido e a estampa de África têm. “Fui escolhida para esse trabalho. Quando essas mulheres dizem que estou empoderando elas, eu me sinto empoderada. Minha mãe foi exemplo disso, ela sabia exatamente o que estava abraçando quando apoiou o nascimento do Ilê Aiyê”, disse.
O talento e a arte de Dete hoje são reconhecidos e estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo. As ideias que um dia estiveram na cabeça de uma menina encontraram uma oportunidade de se mostrar para o mundo em meio àqueles tecidos que vestiriam o primeiro grupo de pessoas a colocar um bloco afro na avenida.
“Eu brincava de boneca pensando em como um tecido poderia transformar o corpo e a cabeça de uma mulher negra, e com o surgimento do Ilê eu pude colocar em prática tudo aquilo que eu pensava sem nunca ter ido a África, sem ter a referência”, disse. “Com o Ilê eu pude começar com modelos acanhados, com torços na referência de terreiro. Só de enrolar um tecido na cabeça já era um começo pra mim. Com o tempo fui conseguindo dar vida a esses tecidos no corpo das mulheres, consegui formar a nossa coroa, nossos turbantes que nos empoderam e nos deixam muito mais elegantes”.
Esse trabalho que luta pelo empoderamento e pela autoestima do povo preto é um marco, um diferencial do que é o Ilê Aiyê. As pessoas puderam se enxergar e se entender enquanto um corpo belo e pertencente, por isso que a exaltação dessa beleza assume um papel tão importante dentro e fora da Senzala do Barro Preto, como garantiu Vovô.
“É gratificante ver essa transformação. Nosso objetivo não é formar artistas, é formar cidadãos, e isso nós temos conseguido brilhantemente. Ver Salvador começar a se reconhecer como uma cidade negra é importante demais. Sabemos que temos uma contribuição para esse sentimento. Não quero dizer que tudo começou com o Ilê, porque desde que o primeiro negro escravizado pisou aqui, ele sempre lutou para isso. Mas o Ilê chegou pisando firme no chão para criar o despertar da negritude nessa cidade”. Ah, se não fosse o Ilê Aiyê!
Frutos espalhados pelo mundo: Ilê Aiyê forma cidadãos
Mais que um bloco, o Ilê Aiyê é uma instituição formadora de cidadãos. “Eu não queria ser educador, só queria ser carnavaleco”, conta Vovô, mas a escola criada no terreiro de Mãe Hilda e todas as crianças e jovens que a Senzala do Barro Preto já recebeu contestam essa vocação. O Ilê nasceu para isso, para fazer arte, festa e espalhar sementes pelo mundo.
Um desses frutos espalhados pelo mundo está bem perto do bloco. É o mestre Mário Pam, percussionista da banda do Ilê, e ele sabe que ele é um fruto dessa iniciativa. Começou em 1991 na Banda Erê, fez vários cursos com oportunidades dadas pelo Ilê e hoje entrega, em forma de gratidão, o seu talento para que o Ilê Aiyê traga ainda mais frutos. Mas, mais que um caminho profissional, Mário encontrou pelo caminho alguns elementos que são tão importantes para a formação quanto uma profissão.
“Aqui eu me profissionalizei percussionista, me entendi como um homem negro. Antes do IIê eu não sabia nada sobre negritude, nem me entendia como homem negro, na verdade. A TV na década de 90 só tinha pessoas brancas, né? E eu não me reconhecia. Mas quando cheguei aqui vi que existia a beleza negra, conheci a história desse povo, grandes personalidades. Essa foi a mudança principal, foi me entender como um homem negro”, garantiu.
Esse entendimento da própria identidade foi como aquele empurrãozinho, o incentivo que ele precisava para mostra ao mundo o talento que tem. “Eu sou um fruto daqui e não sou o único. São muitas pessoas, ao redor do mundo inteiro, que começou no Ilê Aiyê. Pessoas que talvez não tivessem a oportunidade de estar em outros países se não fosse essa porta aberta aqui”, contou. “Para mm foi um farol, foi o que me deu discernimento e caminho para hoje servir de espelho”.
Sabendo a importância dessa casa para a vida de uma criança negra, ele faz questão de levar seus filhos Anthony Kayodê, de 11 anos, e Amaya Nina, de 4 anos, para viver de perto tudo o que o Ilê pode oferecer e ensinar sobre o que essa cor carrega. “O que eu aprendi, quero que meus filhos também sintam. Mesmo que eles não sigam na arte, na música ou na dança, estar aqui dentro é importante para valorizar quem nós somos”.