
A Didá marcou a Bahia como a terra da primeira banda de tambor formada apenas por mulheres no mundo. Um grupo que uniu o samba-reggae e a força feminina, tudo fruto do desejo de um homem que sempre esteve à frente de seu tempo: Antônio Luís Alves de Souza, o Neguinho do Samba.
Fundada nos idos dos anos 90, a Banda Didá rapidamente se tornou um ícone da cultura afro-brasileira, misturando elementos tradicionais da percussão baiana com uma abordagem contemporânea e futurista. Esse ethos visionário foi moldado em grande parte pela mente criativa do mestre Neguinho, um músico e pensador cuja influência ressoa até os dias de hoje.
É até irônico pensar que esse desejo de empoderar mulheres tenha partido de um homem, mas é essa a história da Didá. Neguinho do Samba sempre sonhou em fundar uma escola de música para mulheres, crianças e idosos; essa última parte ele não conseguiu tirar do papel, mas, há 30 anos, a Didá vem transformando a vida de meninas (e alguns meninos) com a força da música.
Adriana Portela, maestrina da Banda Didá, conhece essa história desde o começo e sabe o peso e a força que esses tambores tiveram na vida de todas as meninas que passaram por essa escola, mesmo as que partiram para outros horizontes diferentes da música.
“Daqui já saíram muitas meninas que construíram uma vida profissional que talvez elas não tivessem se não passassem pela Didá. Aqui elas tiveram uma visão de que a mulher tinha que ter conhecimento para além do tambor, além desse recorte social e cultural. Elas foram em busca disso e hoje temos várias referências”, afirma Adriana. “Nós temos esse papel de formar mulheres cidadãs e políticas, preservar e fazer com que elas resgatem a ancestralidade. Aqui elas se descobrem mulheres pretas, bonitas, de cabelos lindos. Esse é nosso papel, formar mulheres pertencentes a todos os espaços”, garante.

Muitas se descobriram na Didá e ganharam o mundo, outras muitas também escolheram ficar. É o caso de Lucila Laura, atriz, percussionista e arte-educadora que está no grupo há quase 14 anos. Ela, que chegou aos 12 anos para o projeto Sódomo, que oferece aulas para crianças, hoje é professora de percussão e de dança na Didá.
“Sei que sou um exemplo, um fruto daqui. As coisas que aprendi aqui me fizeram conquistar lugares, ocupar espaços, reverberar e multiplicar conhecimento lá fora”, diz Lucila. “Sei o quanto é importante que crianças tenham acesso a esse tipo de conhecimento, de representatividade, ter contato com o empoderamento e elevar a autoestima. Nossa TV não mostra pessoas pretas, sempre foi dito que não nos cabe esse lugar. Essas crianças nos veem ocupando esse espaço e sei que um dia vão ocupar também”, afirma.
Toda essa trajetória da Didá e o forte papel social que o grupo exerce enquanto entidade artística, no entanto, não parece ser o suficiente para atrair investidores. “A imagem de vocês não vende”, dizem alguns empresários. “Bloco de mulher não vende cerveja”, justificam algumas cervejarias... dia após dia, mesmo brilhando no carnaval, está cada vez mais difícil fechar as contas.
“No dia a dia a conta não fecha. É sempre devendo, mas a gente tá aqui. A gente luta com o que temos aqui mesmo, porque graças a Deus temos o nosso espaço físico, os nossos instrumentos e nos viramos para conseguir fazer o a gente faz. É lindo, maravilhoso o que a gente faz, mas é árduo”, assume Adriana. “Não temos patrocínio nem apoio governamental, e colocar o bloco na rua é caro, tem muitos custos e não dá, simplesmente não dá”, destaca.
Mesmo em meio às dificuldades, elas seguem brilhando nos palcos e avenidas. É uma característica da mulher negra essa história de não desistir – e não desistem mesmo. Didá é um nome em iorubá que significa “O Poder da Criação”, e mais que criar, elas recriam e se reinventam dia a dia, porque o show tem que continuar.

Exaltar o legado do mestre
Naquele tempo, tambor era coisa de homem. Pensar fora da caixa e agir como um visionário, que enxergava os novos tempos e a independência feminina cada vez mais latente foi o que tornou Neguinho do Samba um afrofuturista – e isso será exaltado na avenida em 2024.
A Didá vai para o carnaval com o tema “Neguinho do Samba: o grande afrofuturista brasileiro”. O objetivo é exaltar o nome da personalidade que fez desse sonho uma realidade, o homem que trocou um carro importado por um prédio em ruínas no Pelourinho, tudo isso para dar lugar à escola de música com a qual ele tanto sonhou.
Neguinho esteve envolvido em um trabalho do artista norte-americano Paul Simon, que chegou a ganhar um Grammy graças a esse trabalho. Como agradecimento, ele tratou de oferecer ao mestre Neguinho um carro importado, mas ele prontamente fez uma contraproposta: pediu um prédio ali no centro histórico de Salvador para tirar um projeto do papel. Assim nasceu o quartel general das mulheres, a sede da Didá.
“Ele foi um referencial. Mulher não tocava tambor, nós éramos apenas telespectadoras dos homens”, lembra Adriana Portela. “Viemos quebrando esses paradigmas, e muitas pessoas disseram a Neguinho que ele estava maluco, procurando um problema para ele ao juntar tantas mulheres. Ele era um visionário, já sabia o que ia acontecer, viu que era diferente reunir essas mulheres”, completa.
Essa ousadia rendeu e segue rendendo frutos até hoje. Por meio da música, do tambor, da dança afro, da capoeira e de tantos outros ensinamentos passados ali naquele casarão e nas ruas do Pelô, a Didá formou muita gente, deu oportunidade e perspectiva. “Ele criou um alicerce muito forte e muito bem feito, ele deixou a árvore dando frutos e hoje só temos que colher e seguir regando. São 30 anos de muita luta, conquistas e realizações, são muitas oportunidades de tocar com grandes artistas, fechamos o ano com Beyoncé, que nos convidou para participar do evento dela”, conta Portela.
É feito de talento, desejo e sangue
Além da Didá e o samba-reggae, Neguinho do Samba deixou outros frutos importantes para dar continuidade ao seu trabalho: a família. Carla Souza, de 21 anos, é neta do mestre, hoje compõe a diretoria da Didá, além de fazer parte da percussão e dar aulas de dança. A percussão, inclusive, foi um caminho que ela encontrou para estar próxima do avô.
“Sempre fui da dança, não me enxergava na percussão. Mas eu decidi passar a me dedicar um pouco mais a isso porque a música me aproxima de meu avô, da história dele e do legado que ele construiu. Quando percebi isso, entendi que era o momento de eu conhecer o Neguinho do Samba, que até então, para mim, era apenas o Antônio Luís, era só o meu avô”, conta.
Carla acredita que a experiência de celebrar os 30 anos da Banda Didá nesse carnaval com um enredo dedicado ao mestre criador de tudo vai ser emocionante para todo mundo que vive essa história. “É um tema muito forte. Em todos os carnavais nós damos um jeito de lembrar dele de alguma forma, por isso sempre tem uma ala dedicada a isso”, conta. “Mas vai ser diferente ter um bloco todo em homenagem a ele, para ele e sobre ele. Está emocionante preparar, imagino como será o dia mesmo”, ressalta.
Não dá nem pra dizer que não existe um pouco de pressão nesse papel. Carla sabe disso, principalmente porque ela sabe o que a Didá lhe proporcionou está acima de laços sanguíneos, é o que está na identidade do grupo. “Eu me reconheci e me entendi aqui como mulher preta. Pude aprender a amar o meu cabelo, achar ele bonito e ver pessoas parecidas comigo, diferente dos colégios onde estudei, que eram particulares. A Didá é importante na minha vida em aspectos diversos e sei que carrego uma responsabilidade muito grande também no meu nome. Por isso, se os outros dão 100, eu quero dar 1000".